Doce Caminho #6
Sobre Goethe, Machado de Assis, Shakespeare, Agatha Christie e Mario de Andrade
Quanto mais eu fuço a vida de escritores renomados, mais eu me surpreendo com a pressa desmedida dessa hipermodernidade, como diria Gilles Lipovestky, que nos torna tão ansiosos e doentes.
Lendo “Uma Palavra”, de Aline Valek, descubro que Goethe levou 60 anos para escrever “Fausto”.
Sim, eu disse:
SES-SEN-TA anos.
Aline até brinca em “Era uma vez um pacto”:
“... o que talvez só tenha sido possível porque Goethe não tinha um fandom enchendo seu saco para terminar o livro logo.”
A verdade é que, com ou sem fandom, e ainda que Goethe tenha exagerado na dose (ses-sen-ta anos!!!), o tempo nem sempre é um inimigo. Robert Caro, um dos biógrafos mais conhecidos dos Estados Unidos e ganhador do Pulitzer, leva cerca de 10 anos na pesquisa, escrita e publicação de cada livro. Um dos motivos é o cuidado na pesquisa e edição. Além de deixar bilhetes para si, ele cria listas nas quais questiona a história ou o próprio estilo. Disciplinado, ele tem como meta escrever 1000 palavras por dia – e quando não o faz, anota em seu diário o motivo.
Histórias como essa me fazem pensar como estamos mais impacientes e menos resilientes a um ofício e um mercado que sempre foram desafiadores. Desistimos ou nos frustramos, talvez, rápido demais com as pedras de um caminho historicamente marcado pela agonia da concepção de uma história; da pesquisa, da escrita e da edição dessa história; da busca por uma editora; do silêncio após a entrega do original enviado e nunca respondido; das inevitáveis rejeições; do temor das resenhas e dos comentários; da pressão por vendas.
Por que sofremos tanto?
Por que não aprendemos com o passado?
Gosto quando Aline diz:
Trocamos imaginação por eficiência. Eficiência para engajar mais, para provar, com números, que você é boa no que faz, que chegou lá primeiro que os outros. Eficiência para entender um padrão, entrar nele e produzir algo que seja reconhecível como um exemplar bem-sucedido de seu gênero. E de que diversidade de padrões dispomos hoje! Só escolher o seu e tentar se encaixar. Pertencer, no fundo, acaba sendo o maior dos desejos. Muitas vezes, acaba sendo maior do que o desejo de criar.
O desejo de criar.
Por que fazemos o que fazemos mesmo?
Por que se dar ao trabalho de… criar?
4 motivos para seguir em frente apesar de tudo e de todos
1. Machado de Assis
Acredite: não há unanimidade – pelo contrário, há grande chance de sermos rejeitados até depois de mortos, como mostra um teste que a Folha fez, em 1999, com um conto menos conhecido de ninguém menos do que Machado de Assis. O original de “Casa Velha” foi enviado a seis casas editoriais - Record, L&PM, Ediouro, Companhia das Letras, Objetiva e Rocco.
As três primeiras ignoraram completamente o manuscrito, uma prática feia e ainda muito comum no mercado. As demais recusaram a história, sem tomar conhecimento de que o texto pertencia ao maior nome da literatura brasileira.
Moral da história: a dor é inevitável; o sofrimento, não (dizem!). Insista!
2. William Shakespeare
Segundo Leandro Karnal, das 37 peças de William Shakespeare, apenas uma é completamente original. As demais foram bebidas de outras fontes. “Esse exemplo nos mostra que a criatividade não é a ideia extraordinária que surgiu do nada”, escreveu o historiador em sua newsletter, “mas uma capacidade de recriar partes parcialmente concebidas por outra pessoa.”
Isso também aconteceu com alguns clássicos da Disney. Os originais são bem mais violentos. “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen, tem, coitadinha, a língua cortada ao virar humana.
Note: o ponto aqui não é fazer copy + paste, mas entender que a criatividade pode ser encontrada e desfrutada de diferentes formas. Para Karnal, ela está ligada a características como experimentação, superação do medo de errar, construção de repertório e aprendizado, entre outras.
Moral da história: não paralise; inspire-se!
3. Agatha Christie
Em vez de se lambuzar na fama, Agatha acreditava que o seu principal papel era ser esposa e mãe, por isso, tinha um processo e uma disciplina próprios, que se encaixava à sua personalidade e rotina. Ela escrevia onde conseguisse, no horário possível, com uma letra nem sempre legível. Ring a bell?
Até nos cadernos de exercícios dos filhos ela anotava ideias e explorava possíveis enredos ou personagens. Sabe o que eu também gosto dela? De como de certa forma, assim como Lucinda Riley, ela encontrava na sua rotina as sementes para construir uma história.
Agatha trabalhou em uma farmácia e, por isso, conhecia um pouco sobre elementos químicos e... venenos. Ela também colecionava exemplares do Jornal Médico Britânico.
Moral da história: não crie somente a história; descubra o seu jeito de fazer.
4. Mário de Andrade
Mesmo com todo o prestígio que dispunha, Mario se autopublicou. Isso era muito comum na época e não era atestado de incompetência ou vergonha. Ele contou, muitas vezes, com a ajuda de amigos. Di Cavalcanti, por exemplo, criou uma capa para “Pauliceia Desvairada”, que acabou sendo preterida pela obra de outro contemporâneo, o advogado e escritor Guilherme de Almeida.
Mario só ganhou apoio de um editor no final da vida, quando publicou “Obras Completas”.
Moral da história: não desista. Como diria meu pai, vergonha é roubar e não conseguir carregar.
Em suma
Para seguir em frente, é preciso vencer a rejeição, é preciso criar seus próprios métodos, é preciso buscar aprender, é preciso ter clareza sobre o seu propósito e ousar.
Na lendária entrevista de Clarice Lispector à TV Cultura, em 1977, ela reconhece:
“Eu sei que antes ninguém me entendia; agora me entendem.”
Há sempre tempo.
Há sempre esperança.
Com desejo de criar, avancemos.
Em tempo
Vale conferir:
A carta do diretor de cinema André Gregory ao amigo fotógrafo Richard Avedon:
“Eu preciso dizer de novo com ênfase: a vida e o trabalho são igualmente importantes. Você não pode separar um de outro. O trabalho muda a vida, e a vida muda o trabalho.”
Um dos melhores “sing-along” do cinema, com uma música de Burt Bacharach (RIP!):
A inteligência artificial “recriando” as férias de Machado de Assis, Virginia Woolf e Fernando Pessoa:
Lindas provocações.
Amei!
Tati, fiquei emocionada com seu texto. Como é difícil essa vida de escritora. Decidi me autopublicar, depois de mandar o original e receber alguns nãos. Dá medo e até vergonha, sabe?
Mas vou seguir em frente com o meu sonho e vamos ver no que dá. Beijos