Peço licença aos mortos, neste 2 de novembro, para abrir uma conversa sobre um dos meus filmes favoritos: Sabrina.
Contrariando expectativas, o que sempre me atraiu nesse triângulo amoroso entre a filha do motorista e os dois irmãos milionários nunca foi o romance, mas as pílulas de sabedoria sobre o tempo.
“Era uma vez, na costa norte de Long Island, não muito longe de Nova York, havia uma mansão muito grande, quase um castelo, onde morava uma família chamada Larrabee. Havia servos dentro da mansão e servos fora da mansão; barqueiros para cuidar dos barcos e seis equipes de jardineiros: dois para o solário, o resto para o terreno e um cirurgião de árvores sob contrato. Havia especialistas para as quadras de tênis cobertas e para as quadras de tênis ao ar livre; para a piscina ao ar livre e para a piscina coberta. E sobre a garagem morava um motorista chamado Fairchild, importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha chamada Sabrina.”*
É possível não se apaixonar por essa abertura?
Sabrina, como você já deve imaginar, conta a história da ingênua filha do chofer, que cresceu observando os patrões do alto de uma árvore, na divisa entre a “casa grande” e a área dos empregados.
Ainda menina, ela se deixou enfeitiçar pela beleza e malemolência de David, o filho caçula dos Larrabee, o bon-vivant típico, interessado em aproveitar a boa vida que Deus e o irmão Linus lhe deram. O primogênito da família sempre foi muito certinho. Workaholic, frio e calculista, era chamado pelas costas de “o único doador vivo de coração.”
O que você precisa saber é que esse filme tem duas versões. A primeira, de 1954, ainda em preto e branco, tem Audrey Hepburn no papel principal, ao lado de William Holden (David) e Humphrey Bogart (Linus), com direção de Billy Wilder, responsável por Crepúsculo dos Deuses e Quanto Mais Quente Melhor.
A segunda versão, feita quase 40 anos depois, tem Julia Ormond como Sabrina, ao lado de Greg Kinnear, como David, e Harrison Ford, como Linus. Este ator já era um verdadeiro blockbuster, enquanto os outros dois ainda engatinhavam na carreira. Kinnear tinha feito somente produções televisivas, enquanto Julia estourava ao lado de Brad Pitt, em Lendas da Paixão, e de Sean Connery e Richard Gere, em Lancelot. A direção ficou a cargo de Sidney Pollack, dono de um extenso currículo como diretor e ator. Naquela época, ele já tinha ganho o Oscar por Entre Dois Amores. Levou para casa a cobiçada estatueta após duas outras indicações - por Tootsie e A Noite dos Desesperados.
A essência dos dois filmes é a mesma. Para que a filha encontrasse outro propósito na vida, além de espiar e sonhar com David, o motorista Thomas Fairchild despacha Sabrina para Paris (ô paizão, hein?!).
“Você está infeliz no amor. Uma mulher feliz no amor queima o suflê. Uma mulher infeliz no amor se esquece de ligar o forno.”
Na primeira versão, Sabrina-Audrey aprende a cozinhar; já na segunda, Sabrina-Julia consegue um estágio na Vogue, onde aprende com um fotógrafo a admirar o mundo pelas lentes de uma câmera fotográfica.
Além de Fanny Ardant, a fase parisiense de Sabrina tem Patrick Bruel.
Apesar de ser fã da Audrey, gosto mais da segunda versão, tanto pelo humor, quanto pelas adaptações ao mundo em que ainda vivemos, mesmo duas décadas após o seu lançamento.
Três cenas sempre chamaram a minha atenção.
Cena 1
Após a temporada francesa, Sabrina fica, por diferentes motivos, sob o radar dos irmãos Larrabee. Ela diz a Linus, o workaholic: “Eu sei que você trabalha no mundo real e você é muito bom nisso. Mas isso é trabalho. Onde você vive, Linus?”
Linus, em seu suntuoso escritório, no coração de Manhattan.
Ora pois, no início da década de 1990, a discussão sobre o equilíbrio entre vida profissional e pessoal não estava em voga. A internet ainda engatinhava, com acesso discado e limitado. O celular era um “tijolão”, restrito a poucos. Uma linha custava, em média, R$ 3 mil. Logo, as fronteiras do mundo do trabalho e de casa/lazer ainda não tinham sido derrubadas. As mudanças também não eram tão velozes quanto hoje.
Ainda assim, Sabrina filosofava: quem é você além do trabalho que faz ou do título que sustenta?
Cena 2
Enquanto descobre o mundo “do outro lado do muro”, a protagonista reflete sobre as escolhas do pai. Ao observá-lo em seu quarto, coberto de livros, ela diz que sempre admirou sua escolha: ser motorista para ter tempo para o que realmente ama, a leitura. Diz, ainda, que sempre o imaginou sentado ao volante, com o livro em mãos, à espera do patrão.
Thomas Fairchild, em seu apartamento, em cima da garagem.
Justiça seja feita: o pai de Sabrina nada tinha de bobo. Descobre-se que ele investia secretamente em ações – quando o patrão comprava, ele comprava; se vendia, ele vendia também. Acumulou, assim, uma fortuna.
Note: naquela época, propósito também não rendia pauta. Contudo, Fairchild sabia o que o fazia feliz e construiu uma vida em torno disso. Não se deixava levar por ilusões, mas também não perdia oportunidades que quicavam bem diante de si. Não teve uma vida luxuosa como a dos Larrabee, mas teve tudo o que sempre quis - e alguns milhões a mais na conta, é verdade.
Assim, Sabrina, a filósofa, provoca: afinal, o que é essencial para você?
Cena 3
Finalmente, Sabrina topa fazer um frila de fotografia para Linus – depois de pegar um helicóptero em Manhattan, para driblar o trânsito, eles embarcam em um jatinho até a casa da praia.
Linus e Sabrina, durante um passeio pelo balneário.
No jatinho, ela o vê compenetrado, absorvido por contratos e relatórios. Pergunta se ele nunca espia pela janela. Ele diz que não tem tempo para isso. A fotógrafa amadora pergunta o que aconteceu com o tempo poupado com o uso do helicóptero. Ele responde que está guardando.
Sabrina, então, lacra: “não, Linus, você não está”.
Na caaaaaara!
Nem ele, nem nós estamos, amados peregrinos. As horas e os minutos do presente não podem ser recuperados. Ou vivemos e aproveitamos o agora ou os perdemos para sempre.
Logo, a filósofa Sabrina nos convida a refletir sobre a nossa consciência sobre o tempo. O que realmente estamos fazendo com ele?
Eu demorei muitos anos para descobrir por que esses trechos mexiam tanto comigo. Dentro do nosso script de vida, não existe um roteiro ou uma aula sobre o tempo, sobre como o usamos, como o aproveitamos, como o perdemos.
Eu já fui workaholic. Lembro-me de uma chefe que dizia que o cliente nos contratava para nos preocuparmos por ele, um convite para desenvolver transtornos de ansiedade ou de pânico, a partir de ligações não atendidas, e-mails ou mensagens não lidos, possíveis crises.
Demorei a refletir sobre:
Até que ponto eu posso me responsabilidade pelos problemas dos outros?
Até que ponto vale investir o meu tempo nisso?
O que realmente desejo criar com o tempo que me foi dado aqui nesse planeta azul?
Se você também já refletiu sobre isso, sabe que essa peregrinação não é nada simples. É um caminho de inúmeras dores, decepções, dúvidas, rejeições, incertezas. É uma rota para se esvaziar o copo e compreender, não a dor, mas a beleza do vazio.
Contudo, é bonito ver o quanto nos transformamos ao longo do tempo. Arrisco dizer que, de tempo em tempos, precisamos repetir a rota do vazio para (re)descobrir o essencial, da mesma forma como fazem os peregrinos de Santiago de Compostela. É nessa viagem que fazemos as pazes com o tempo, ao se libertar, como diz Quintana, “da casca dourada e inútil das horas”, para (re)descobrir o propósito ou missão de vida e (re)encontrar a paz que ressoa aqui, no centro do peito.
Comigo, pelo menos, sempre foi assim.
E com você? Onde você vive, amado(a) peregrino(a)?
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* Essa abertura é da segunda versão de Sabrina. A primeira é um pouquinho diferente e tem a suave voz de Audrey.
** Não deixe de prestar atenção na trilha sonora, com Sting mandando uma bossa nova.
*** As duas versões de Sabrina estão disponíveis na Prime Video, mas só a segunda - da Julia, do Harrison e do Greg – faz parte do pacote convencional. A primeira versão, com Audrey, pode ser alugada por menos de R$7. #ficadica para o feriado. ;)