Este foi o conselho de Raul Seixas a um jovem Paulo Coelho.
À época, Raul já tinha trocado o trabalho como executivo de gravadora pela carreira musical. Paulo relutava em escrever canções com ele, mas alimentava desde os 13 ou 14 anos a ambição de ser um escritor famoso no mundo todo.
Desviou-se do seu objetivo, buscou atalhos e quase desistiu. Tornou-se, afinal, o que sempre sonhou.
Uma das minhas leituras de 2022 foi "O Mago: A incrível história de Paulo Coelho", de Fernando Morais, o mesmo autor das biografias de Olga Benário, de Assis Chateaubriand e, mais recentemente, de Lula.
Não escolhi esse livro para extrair uma fórmula de sucesso. Se assim fosse, o que não seria desabono algum, talvez tivesse me frustrado. A trajetória do autor de “Diário de Um Mago” e “O Alquimista”, entre outros, prova que o sucesso não é mesmo uma linha reta.
É, afinal, reflexo do nosso autodesenvolvimento, uma linha embaralhada, cheia de nós cegos, daqueles difíceis de desatar e explicar.
3 motivos para ler a biografia de Paulo Coelho/Fernando Morais
1 Primeiro, para conhecer melhor essa figura, que desperta sentimentos tão contraditórios.
Paulo sempre foi massacrado pela crítica brasileira e louvado pela estrangeira. A biografia escrita por Morais conta que, mesmo depois de ter se tornado um best-seller mundial, o autor de “O Alquimista” foi esnobado, em feiras internacionais, pelas comitivas brasileiras e celebrado pelas de outros países. Arrancou elogios das mais distintas personalidades, como o francês Jacques Chirac, a americana Oprah Winfrey e a paquistanesa Malala.
Fonte: Oprah.com
É impossível não se perguntar:
- Por que desprezamos tanto um brasileiro traduzido para mais de 40 idiomas, incluindo o “albanês, estoniano, pársi, hebraico, hindi, malaiala e marati”?
- Por que não aprendemos com o exemplo de um escritor que venceu todas as dificuldades do mercado editorial nacional e internacional?
- Por que não valorizamos quem não desistiu diante de portas fechadas e abriu janelas com ousadia e determinação?
- Por que não nos inspiramos no exemplo de quem acompanha incansavelmente a venda de seus livros no mundo inteiro e tem a coragem de colocar em domínio público suas obras para combater a pirataria?
Sempre me pergunto: isso fala mais dele ou de nós?
O que acha?
2 Em segundo lugar, para humanizar essa figura.
Como qualquer um de nós, Paulo não é santo. Fez, ao longo de sua vida, escolhas, no mínimo, duvidosas: sacrificou uma cabra ou bode para se livrar da morte; inventou reportagens durante a passagem pela Redação do O Globo; e tomou para si créditos por uma obra para a qual não colaborou em na-da. Essa, aliás, foi uma das histórias que mais me perturbaram – e você vai entender o motivo.
Antes do lançamento de “Diário de Um Mago”, que narra a famosa peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela, Paulo assinou a autoria um outro livro, "O Manual Prático do Vampirismo".
Entenda: assinou, não escreveu.
Diante de um bloqueio criativo, ele requisitou a ajuda de um conhecido, cujo apelido é “Toninho Buda”. Pediu que ele entregasse o texto combinado com a editora, dentro de um prazo já renegociado. O acordo entre eles não foi, aparentemente, de Ghostwriting, visto que:
1 – o conhecimento compartilhado no livro era de Toninho Buda, e não de Paulo;
2 – o escritor mineiro apareceu no lançamento do livro e se surpreendeu que o seu nome não constava nem na capa, nem na ficha catalográfica, nem em nenhuma das 144 páginas do Manual. Logo, Toninho Buda não era um ghostwriter.
Fonte: Lisa Tener I C1G
É decepcionante, também, descobrir que há mais ficção do que imaginamos na peregrinação até Santiago de Compostela. Paulo chegou à cidade de ônibus, pois a caminhada terminou cerca de 150 km antes, em Cebrero. “Muitas vezes penso nesta ironia: o texto mais conhecido sobre o Caminho, neste fim de milênio, foi escrito por alguém que nunca o fez até o final", comentou a Morais.
Passada a surpresa, verdade seja dita: Paulo não foi o primeiro nem será o último a romancear experiências. Elizabeth Gilbert não teve a ideia de escrever o seu “Comer Rezar Amar” depois de um sabático por três países. Ela planejou tão bem a sua aventura, que já saiu dos EUA com um contrato assinado com uma editora.
Para mim, essa trajetória tortuosa de Paulo, dos pactos com o demônio à procrastinação e dúvidas sobre aquele sonho de menino, o torna humano. Chega de cair na pegadinha de heróis, né?
É disso que precisamos, de humanos que nos façam refletir sobre as sombras e nos impulsionem com a sua luz. É fácil criticar; difícil é ter a mesma determinação e capacidade de realização.
"São aparentemente dessa época, quando tinha entre treze e catorze anos, os primeiros sintomas de uma irreprimível ideia fixa, uma verdadeira obsessão que não o abandonaria jamais: ser escritor. Quase meio século depois, consagrado como um dos autores mais lidos em todos os tempos, ele revelaria, em um parágrafo de seu livro O Zahir, as razões que o levaram àquele sonho: Escrevo porque quando era adolescente não sabia jogar bem futebol, não tinha carro, não tinha uma boa mesada, não tinha músculos. Tampouco usava roupas da moda. As meninas da minha turma só se interessavam por isso, e não conseguia que prestassem atenção em mim. À noite, quando meus amigos estavam com suas namoradas, eu passei a usar meu tempo livre para criar um mundo onde pudesse ser feliz: meus companheiros eram os escritores e seus livros." (de "O Mago: A incrível história de Paulo Coelho", por Fernando Morais)
Como qualquer um de nós que se arrisca no exercício da criação, qualquer que ela seja, Paulo também questionou se o que tinha em mãos, na mente ou no coração, não era “apenas mais um livro sobre o assunto” [Santiago de Compostela].
Na época, aliás, a peregrinação por este Caminho havia perdido a força. Foi justamente o diário do mago brasileiro, um relato tão místico, esotérico ou fantasioso, que despertou a curiosidade por aquelas rotas e revitalizou vilas e cidades até a catedral onde repousam os restos mortais do apóstolo de Cristo.
O que acha?
3 Por fim, em terceiro lugar, carrego em mim uma curiosidade enorme sobre os bastidores de qualquer processo criativo.
Adoro visitar casas de artistas, para descobrir seus hábitos e rotinas. Faço questão de ler introduções e agradecimentos, na esperança de descobrir nas entrelinhas colaborações e confissões.
Neste caso, Fernando Morais passou três anos debruçado sobre o livro. Durante seis semanas, ele foi a sombra de Paulo. Conheceu a sua rotina, teve acesso a todos os seus diários e o entrevistou sobre os pontos mais singelos e, também, os mais contraditórios. Essa liberdade de investigação foi crucial para descrever passagens, como as já citadas, que não favorecem em nada o personagem principal. O próprio Paulo explicou por que topou a empreitada:
"…é impossível escrever sobre si mesmo sem terminar justificando os erros e engrandecendo os acertos, faz parte da natureza humana. Daí a ideia do seu livro ter sido aceita com tanta rapidez, mesmo sabendo que estou correndo o risco de ver reveladas coisas que, no meu entender, não são necessárias. Porque, se elas fazem parte da minha vida, precisam ver a luz do dia." (de "O Mago: A incrível história de Paulo Coelho", por Fernando Morais)
Além das seis semanas com o biografado, Morais mudou-se para o Rio de Janeiro por oito meses para preencher as lacunas e colorir as experiências de infância, adolescência e vida adulta do seu personagem.
Dizem que a jornada de escrita de um livro é solitária, mas o biógrafo demonstra o contrário. Durante esses três anos, ele contou com muita ajuda: para organização de informações e contatos, para leitura crítica dos capítulos, para pesquisas e até para realizar as centenas de entrevistas realizadas com amigos, familiares, conhecidos e desafetos.
Quanto à Paulo, depois de muitas loucuras, ele construiu para si uma rotina, com tempo para a escrita, para exercícios físicos, para os cuidados com a casa e as plantas, para a leitura de jornais e de notícias relacionadas a ele. Aquele menino indisciplinado, que fracassava na escola, tornou-se um fiel seguidor de regras e horários.
Qualquer um de nós consegue reconhecer que os “regulamentos do monastério”, como o escritor denominou a sua organização diária, são necessários para não se distrair nesse mundo líquido e não se perder do seu propósito, do que realmente importa ou de quem se é.
E Paulo parece ter bem claro o que é essencial em sua vida:
"Minha obra é maior que minhas manias, minhas palavras, meus sentimentos. Por ela me humilho, peco, espero, desespero." (de "O Mago: A incrível história de Paulo Coelho", por Fernando Morais)
O conselho de Raul para a composição de músicas parece ter sido levado à sério. Suas histórias são acessíveis e lhe garantiram desde um lugar no livro dos recordes até uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Gostando ou não de suas obras, é uma história e tanto, não?
O que você acha?
Serviço: “O Mago: A incrível história de Paulo Coelho", Fernando Morais, Editora Novas Páginas.