Caiu nas minhas mãos, por força dos algoritmos, o livro A Magia do Silêncio, escrito pela monja francesa Kankyo Tannier. Há muito tempo percebo o impacto negativo do barulho da mídia e das redes sociais na minha vida. Há muito tempo me incomodo com o apego ao celular, que nos isola de outros humanos e nos torna mais vaidosos. Sinto isso em museus, em salas de espera de médicos ou laboratórios, no metrô. Ninguém mais se olha. Ninguém mais (se) observa. A tela roubou toda a atenção e virou a protagonista na nossa forma de experimentar o mundo.
Será que estamos mesmo agilizando tempo?
Ou perdendo cada vez mais tempo?
Estamos mesmo mais conectados?
Ou cada vez mais desconectados?
O quanto ganhamos?
O quanto perdemos ao submergir nesses universos paralelos?
As palavras da monja ressoaram em mim:
"A poluição visual e a onipresença das telas têm em comum a capacidade de atrair nossa atenção para o exterior. E também de instalar sutilmente em nossa vida essa malfadada sensação de falta ou insatisfação latente, essa espécie de angústia quase permanente. A mente entra em “modo hiperativo” ou “modo estresse”, pois busca do lado de fora a solução mágica para o mal-estar interior."
Ansiedade.
Comparação.
Insatisfação.
Irritação.
Ilusão.
Estresse.
Exaustão.
É tudo parte do pacote, incluído nos termos e condições que a gente insiste em não ler.
E sabe o que fica cada vez mais difícil?
A serenidade.
O foco.
A alegria genuína.
A ação.
A felicidade.
A colaboração de peito aberto.
É muita confusão.
É muito barulho.
Muita espuma.
Muita superficialidade.
"Muitas vezes, o silêncio nos amedronta. Sobretudo nos dias de hoje, em que somos bombardeados por ruídos, imagens, notícias e histórias. Vivemos a era do culto da emoção, nutrindo alegrias efêmeras e transitando apressadamente de uma ideia a outra", sugere a monja.
Assisti a aula aberta da Dra Regina Chamon, a Dra Sangue Bom do Instagram e a dona do podcast Desestresse, sobre medidas de enfrentamento ao estresse. A atividade é parte de uma mentoria que ela oferece, bem mais completa, baseada no programa SMART, da Universidade de Harvard. São três pilares:
1) Reconhecer;
2) Estimular resposta ao estressor por meio de técnicas de relaxamento;
3) Lançar mão de estratégias de enfrentamento ou adaptação.
O que me surpreendeu, ainda no primeiro pilar, é que o fator estressante tem sempre algumas características: aquele sentimento de falta de controle, a imprevisibilidade, a novidade e a ameaça. Ameaça, veja só, inclusive ao ego. Ela usou um exemplo bem simples: médicos carregam a fama de falta de pontualidade. O atraso pode gerar estresse na médica, que não quer ser igual aos demais. Confesso: eu me identifiquei na hora. Quem nunca pensou “eu não sou como os outros?”. Digo mais: quantas ameaças como essa, sem contar as outras, não enfrentamos por dia?
Naquele documentário da Netflix sobre longevidade (falei dele na DC#16), uma especialista conta que os celulares, com a sua facilidade de acessar notícias de tudo e de todos, também nos faz carregar os problemas do mundo. É difícil se manter resiliente frente a esse dementador. Na isolada vila italiana, onde as notícias não chegam, o estressor tem um tamanho mais razoável, o que aumenta a capacidade de resiliência e a possibilidade de enfrentar os problemas com menos sofrimento.
Como você tem passado?
O documentário, a aula e a leitura repousaram em um cantinho do meu subconsciente, junto a algumas práticas ou mudanças de hábitos que eu já vinha adotando para preservar a minha saúde física e mental. Passei a notar, na última semana, uma alteração no meu estado de presença, de concentração e de criatividade. Uma mente mais quieta, mais atenta ao presente, às escolhas e aos detalhes.
Fui a um festival de empreendedorismo e, em todo o trajeto, feito de ônibus, metrô e van, notei as cores e cheiros, os humanos e a natureza (ou a falta dela). Consegui controlar a tensão de me ver em uma tempestade. Consegui não me estressar nas filas. Consegui não colocar apressadamente rótulo em tudo, dando espaço para a curiosidade comandar o jogo.
A primeira palestra que assisti foi com a Nathalia Arcuri. Ela mal subiu ao palco e os celulares já estavam a postos. Fotos, flashes, vídeos. Eu me senti na plateia de um show ou de um programa de auditório - e não tem veneno escorrendo no canto da boca ao dizer isso. Foi divertido e instrutivo. Ficou claro o alcance e o impacto, assim como a determinação, da jornalista que virou personalidade ou celebridade pela plataforma de entretenimento financeiro que criou. Ela falou das dificuldades, dos custos e das lições que a gente não repara, pois só vê que ela chegou lá. Lá onde mesmo?
Nas outras palestras, nas salas paralelas, eu aprendi que não posso mais me sentar no fundão, como faço desde os tempos da escola. A visão fica prejudicada pelos celulares ao alto e à frente, registrando não só quem ensina, mas também cada pedacinho do que é projetado. Tive a impressão de ser a única pessoa com um bloco de anotações na mão. Jornalista e escritora à moda antiga, talvez. A verdade é que anotar me ajuda não só a assimilar e a gravar a informação, mas serve ainda como estopim para reflexões. Sem pressa nem distrações. No tempo que o meu processador precisa para decifrar os algoritmos e fazer as conexões.
No entanto, eu não posso negar: em alguns momentos, eu me senti meio dinossauro diante das colegas, com seus cérebros multitarefas, tirando foto, comentando a palestra, checando as redes, tudo ao mesmo tempo. Precisei interromper a distração, deixar para lá a comparação, para perceber o que me fazia mais feliz, qual o motivo de estar ali.
Aprender.
Conectar.
Só isso.
Só soube do ataque a Israel quando cheguei em casa. Mais uma guerra? Mais dor? Como assim, mundo?!
“Demorei” a saber porque estava focada em outra coisa, no meu “aqui e agora”, o que não aconteceria no passado. Essa desaceleração é um desafio, pois exige de mim me libertar de muita cobrança e decidir o que é realmente essencial na minha vida. Para mim, não basta reduzir o volume das redes e do noticiário. Preciso dar uma escapadinha, me afastar do ambiente. Eu não sou judia, mas o meu Shabat é desligar as redes na sexta-feira à noite e ficar 24 horas ligada à realidade. É impressionante como a noite, o dia e a tarde se alargam quando saio do piloto automático. Não nego: a mão coça. A ansiedade se faz presente, mas é gradualmente substituída por uma satisfação sem explicação, uma tranquilidade deliciosa.
Na sexta, muitas vezes, a última coisa que faço é acompanhar o ritual conduzido pelo mestre em Cabala Ian Mecler, que entendo como um convite a conexão interior para retornar, no dia seguinte, à rotina e às redes de um outro lugar. No sábado passado, ele programou um conteúdo especial, não só para marcar o fim do Shabat (Havdalá), mas também a abertura da Torah. Contudo, antes mesmo da live começar, ele foi cobrado ao vivo por uma seguidora. Os cinco minutos iniciais são sempre reservados a recados, uma forma de aguardar a chegada de mais gente. Aquela seguidora, porém, tinha pressa. Lançou logo o seu veredito no chat: ele só queria vender o próprio peixe. Eu fiquei incomodada, mas quantas conclusões apressadas eu mesma já não tirei e continuo tirando? Que voracidade é essa que sentimos?
Ao contrário de mim, a feição de Ian não registrou qualquer aborrecimento com o comentário. Imaginei até que não tivesse visto. Ele manteve o rito sem agitação. Quando iniciou oficialmente a live, o mestre de Cabala destacou o momento difícil pelo qual o mundo passa e como o conflito acentua isso ainda mais. Explicou como qualquer um de nós tem a capacidade de ajudar. Precisamos escolher se vibramos ódio ou amor. Nas mínimas atitudes. Em toda e qualquer palavra.
Naquela mesma noite, seguindo a minha leitura, a monja destacou uma frase do filósofo e teólogo francês Blaise Pascal, que resume da seguinte forma esse estado de ser:
“Todos os problemas do homem vêm de sua incapacidade de ficar em paz em seu próprio quarto.”
Ainda assim, dormi angustiada e acordei, às 3 horas da manhã de domingo, sonhando com guerra. Com a respiração ainda ofegante, notei como a noite estava silenciosa. São Paulo não tinha ruído algum – nem de carro, nem de vento, nem do sabiá, cujo canto solene ecoa diariamente na escuridão. Há quem diga que os machos cantam à noite para proteger as crias dos predadores; há quem diga que o nosso barulho e as nossas luzes perturbaram suas percepções.
No começo, eu me irritava. O canto do pássaro, cujo nome em Tupi remete “àquele que reza muito”, parecia sair de dentro do meu quarto, atrapalhando o meu sono de donzela. Diante da possibilidade de termos causado um distúrbio a essa ave tão brasileira, passei a sentir uma tristeza profunda. Era a dor dele que refletia em mim ou vice-versa?
Na madrugada de domingo, o silêncio doeu mais. Depois de virar de um lado para o outro sem sucesso, ainda tentando tirar as imagens de sofrimento da cabeça, resolvi fazer a única coisa ao meu alcance naquele momento: rezar. Pedi pelo fim de tantas guerras, moléstias, misérias e mazelas. Como fechar os olhos a isso tudo? Como ser otimista diante de tudo isso?
Entoei o que acredito ser a oração mais conhecida do mundo e, quando disse “amém”, o Sabiá começou a cantar. Coincidência?
Talvez.
Só sei que o seu canto já não era triste, mas pura resistência amorosa.