Cena de “The Father” / “Meu Pai”
Assisti tardiamente, ou no meu próprio tempo, o sofrido “Meu Pai” (The Father), com Anthony Hopkins e Olivia Colman, na Netflix. O filme é um grande exercício de empatia, quiçá o vislumbre de uma experiência futura, neste mundo de expectativa de vida cada vez mais longa.
O diretor Florian Zeller foi capaz, junto ao seu protagonista, de nos fazer entrar na cabeça de Anthony, o personagem principal, e sentir as dores de quem perde a memória e vive uma vida aparentemente igual, mas com mudanças bruscas e frequentes, muitas vezes sem reconhecer ou se reconhecer, sem pertencimento e sem sensação de segurança. Acompanhamos, assim, as alterações de humor, a perda de objetos, o temperamento arredio e rude, as ausências sentidas, os delírios de uma existência cada vez mais desconhecida.
É engraçado e assustador quando Anthony, um engenheiro, se autoproclama um dançarino profissional de sapateado, habilidade que nem ele mesmo sabia que tinha, profissão ou hobby que ele nunca exerceu. A rotina torna-se um terreno inóspito, exigindo um acompanhamento mais próximo, às vezes, incompatível com o amor, com os compromissos e com a vida dos demais. É quando o cuidador entra em cena e se transforma ora em uma figura alarmante, ora desnecessária, ora acolhedora, causando um emaranhado de emoções, do sentimento de ameaça ao de incapacidade, prevalecendo o do abandono.
“E eu?”, pergunta à filha.
Zeller também nos convida a vestir os sapatos desta filha, frente a um pai, até então uma figura de apego, em sua vulnerabilidade máxima. A rotina dela é massacrante: ansiedade, tristezas, cobranças, medo, decepções, expectativas, escolhas. Vive um dilema que inevitavelmente baterá às nossas portas, na vida real.
Diante da expectativa de vida cada vez mais longa, somos confrontados com o envelhecimento – não só o nosso, mas também daqueles que amamos. Em algum momento, nós vamos ter que discutir o nosso primeiro papel social desta existência, o de filhos, que exige novas atualizações no século XXI, ainda que seus contornos e limites não estejam claros.
Não me refiro nem ao caso dos personagens Anthony e Anne, que lidam com uma doença incapacitante, mas até com os desafios que a nossa sociedade tecnológica e individualista impõe, por exemplo. Qual é o papel dos filhos no acolhimento e na adaptação a esses desafios? Vamos aumentar a população de cuidadores ou vamos nos tornar um? E, neste caso, como equilibrar mais esse prato?
A população nativa deste país continental não parece padecer deste dilema. Seus idosos não são descartados ou inutilizados, mantendo a sua importância na comunidade, ajudando a preservar os valores e as tradições, tornando-se uma fonte de serenidade e sabedoria frente às mudanças do mundo. Alguns países asiáticos mantém um olhar cuidadoso para os seus idosos, estimulando conexões e atividades sociais, principalmente com a família. Nem sempre isso acontece de forma espontânea. Li que a China possui uma lei, desde 2010, que obriga os filhos a visitarem com frequência seus pais sob pena de multa e até prisão.
Meu impulso é sempre questionar: em que momentos deixamos de ser a civilização do cuidado relatada por Margaret Meads?
Eu sei, porém, que essa é uma visão bem simplista. Uma enfermeira me disse, recentemente, que teve que aprender a lidar com o que via, a se lembrar de quem nem tudo é o que parece. Só assim ela poderia não se revoltar ao ver uma pessoa sozinha, sem acompanhante ou visitas, dias a fio no hospital. A maior parte das vezes vemos uma cena e não o filme inteiro.
Além disso, a gente tende a criar subterfúgios para não encarar e dividir tudo que dói, que parece feio, que soa como fracasso, que parece fraqueza ou egoísmo. Fugimos de situações e pessoas que teimam em nos recordar do que não queremos lidar. Curvamo-nos aos julgamentos, inclusive os próprios, e desconfiamos da coragem que nos habita e que só transborda nos momentos mais difíceis.
A própria maternidade, tida por muitos como a verdadeira missão feminina, encobre uma série de crenças, medos e preconceitos. Somente hoje se fala sobre os dilemas da mulher diante do seu novo papel, mesmo quando ele é sonhado e planejado. Os desafios do puerpério, da exaustão dos primeiros anos e da amamentação eram omitidos pelas próprias protagonistas, não por egoísmo ou pela tal rivalidade feminina, que me parece inventada para causar separação, mas por serem elas, inconscientemente, vítimas de uma sociedade que romantiza essa fase da vida feminina, cobrando uma superação solitária e sobre-humana.
Os desafios não param por aí. A mulher que decide deixar o mercado de trabalho para se dedicar integralmente aos filhos é olhada com desconfiança, como se a sua escolha fosse uma traição à luta pela emancipação feminina, como se esta não estivesse firmada no direito à escolha, seja qual ela for. E a mulher que não teve filhos?
Estranha, no mínimo. o/
A Júlia Jalbut escreveu um livro belo e doído, lançado pela Editora Planeta, no qual ela conta a sua experiência com o adoecimento dos pais. Sim, dos dois, praticamente ao mesmo tempo. À época, ela tinha pouco mais de 20 anos e conviveu com essa rotina de vulnerabilidade, médicos, laboratórios e internações por mais de 10 anos. No livro, ela faz um apanhado de tudo o que aprendeu, de questões técnicas às emocionais pouco conversadas dentro e fora de casa, dentro e fora dos consultórios médicos.
“Descobri que cuidar de alguém é uma experiência grandiosa e que muita coisa cabe dentro dela: luz e sombra. Amor, raiva e cansaço. Cuidar de alguém é acolher, mas também gritar “basta!”. Aprendi a reconhecer os meus limites e também respeitar os dos meus pais. Cuidar de alguém me ensinou sobre estar ao lado. E sobre estar em mim. Foi, sem dúvida alguma, sobre perder, mas também foi sobra ganhar. Em nós, vi florescer consciência, abertura, humanidade. Percebi que desenvolver essa disposição para estar com o que quer que seja também nos abre a possibilidade de desfrutar de todas as maravilhas que a vida nos favorece: alegria, prazeres, mistério. Há muitas curas para além da eliminação de uma doença.”
Júlia Jalbut
Florian Zeller disse ao The Guardian que “o cinema é um lugar para questões, não para respostas”1. É verdade. Ele nos faz, assim como a literatura, ampliar os horizontes e explorar outras perspectivas. E entre tantas interrogações, a gente vai encontrando respostas únicas, que servem para a gente, talvez exclusivamente.
Não tenho dúvidas de que esse é mais um desafio para a nossa sociedade individualista, que prega a felicidade e a produtividade a todo custo. Eu me convenço, cada vez mais, de que cuidar de alguém é uma escolha que deve partir do próprio indivíduo, a partir dos seus próprios valores, dos seus recursos e da abertura para “educar o coração”, como diria Dalai Lama, diante das inevitáveis limitações impostas pela vida, bem como na crença da imprevisibilidade e da impermanência de tudo.
PS1: Volto à última parte da série sobre escuta na próxima news. Se você não sabe do que eu estou falando, leia A Dança da Escuta e Jane Goddall e a Escuta.
PS2: Ainda estou assistindo o documentário da Netflix sobre longevidade, que relata as tradições e hábitos de quem vive em cinco áreas com mais idosos. Dan Buettner chega a dizer que não é sobre a morte, mas sobre prevenir adoecimento. E se for, na verdade, sobre abrir o coração e a mente?
Leia a matéria completa: https://www.theguardian.com/film/2021/mar/04/florian-zeller-father-anthony-hopkins-miracle-olivia-colman
Tati, que texto necessário. O quanto é importante essa reflexão sobre o envelhecimento. Assisti uma série bem interessante sobre esse assunto no Netflix, acho que fala dos idosos que vivem nas zonas azuis, lugares com qualidade de vida. Aqui em Portugal, o envelhecimento é visível nas ruas e já é um problema social.