Já que o polêmico casamento de Oswald e Pagu foi comentado anteriormente (aqui e aqui), senti a necessidade de jogar mais luz sobre Patrícia Rehder Galvão. A pergunta que sempre me rondou foi: quem é, afinal, essa mulher que tanto fascínio e ira despertou?
É difícil resumir uma vida. É inadequado, também. Nós adoramos colocar etiquetas e rótulos, mas ninguém é só uma coisa ou outra. O mundo não é dual, apesar de toda a nossa insistência e teimosia em enxergá-lo dessa forma. Por isso, fui beber na fonte, para tentar descobrir essa mulher sem fanatismo ou birra.
Pagu era múltipla: desenhava, escrevia, traduzia... Aos 30, escreveu a sua Autobiografia Precoce1. O livro é praticamente uma carta ou um diário endereçado ao segundo marido Geraldo Ferraz, que integrou a equipe da Revista da Antropofagia e chegou a fazer a crítica de Parque Industrial, o primeiro romance proletário do Brasil, assinado por Pagu com um pseudônimo.
Pagu nasceu em 1910, em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Seu local de nascimento não é mencionado no site oficial da prefeitura da “cidade dos crepúsculos maravilhosos”- talvez porque nós, brasileiros, pecamos na conservação e valorização de nossas memórias; talvez, porque ainda menina, ela tenha se mudado com os pais para a capital. Não nasceu em uma família abastada, como a de Tarsila. Morou em uma habitação operária, segundo a própria descrição, no Brás, sem que isso tivesse despertado em si qualquer ativismo político à época. “Aliás, meu egocentrismo era absorvente demais para que eu me impressionasse demasiado com os mais infelizes”, escreveu. Os estudos, bem como seu círculo de amizade, a alçaram para outra classe, um empecilho ao devotar sua vida ao comunismo.
Separei cinco passagens de sua vida, segundo a sua própria narrativa ao marido. Seu objetivo nunca foi escrever uma autobiografia. Não imaginava, aparentemente, que o conteúdo seria publicado ou se tornaria público. Atendeu somente a um chamado do marido para compartilhar sua visão e experiência de mundo. Compartilhar memórias é sempre um trabalho terapêutico e, no caso dela, beirou a autopreservação. “No fundo, eu penso na defesa dos detalhes, porque sei que os detalhes justificarão em parte minha maneira de ser. Ou não”, escreveu.
Você sabe quem foi Pagu?
1. A Vênus
Assim que Pagu surgiu entre os modernistas, espalhou-se os comentários sobre sua beleza. Era uma jovem de 18 anos, formada em Literatura e Arte Dramática no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Sua infância e adolescência não foram marcadas por grandes tragédias ou dramas. Em suas memórias, ela diz que a entrega do corpo aos 12 anos incompletos “foi o primeiro fato distintamente consciente” de sua vida.
Seu relato dá a entender que, à época, ela vivia deslocada e solitária, dentro e fora de casa. Sabia dos riscos e consequências que o envolvimento oferecia à mulher, mas o fez menos por impulso que por revolta. “Não tive precocidade sexual. Praticamente, só fui sexualmente desperta depois do nascimento de Rudá2”, explicou ao marido. A própria Pagu diz que é “difícil saber o porquê das coisas.”
Pois eu tenho cá para mim que, talvez, o caso com um homem mais velho tenha sido o início de uma louca tentativa de ser e se sentir amada. “Lembro minha submissão absoluta. Não ao homem. Ao amor”, escreveu.
Segundo ela, a entrega, ou a fuga, gerou muita confusão, lágrimas, humilhações, abandono e, aos 14 anos, a primeira gravidez. A revolta continuaria a consumi-la. A agressividade era sua companheira e sua companhia. A fuga para o sexo viraria, em vários momentos de sua trajetória, de acordo com o seu próprio relato, além de aversão, um entrave. “Sempre sonhara ver reunido num bloco só de afeto e solidariedade um grupo de jovens de ambos os sexos, em que a questão sexual não entravasse a comunicação e o sentimento afetivo”, chegou a dizer ao marido sobre um período em que morou com jovens ativistas.
2. Os Modernistas
O primeiro modernista que ela conheceu foi Raul Bopp, em 1929. Foi ele, aliás, quem cravou seu apelido. O Pa é, obviamente, de Patrícia; o Gu, de Goulart. O poeta e cônsul fez confusão com o sobrenome da moça a quem queria bajular. Daí já era tarde demais. Bopp teria, também, lhe roubado um beijo. Não conseguiu mais do que isso. Restou o poema:
“Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.
Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.”
Já durante o Movimento Antropofágico, Oswald pediu para conhecê-la após ler alguns textos de sua autoria. “Ele não me interessou mais que outros intelectuais conhecidos naquela época”, explicou Pagu a Geraldo. “Particularmente, eu me sentia mais atraída por Bopp, que possuía mais simplicidade, menos exibicionismo e, principalmente, mais sensibilidade.”
O primeiro casamento foi arranjado por Oswald e Tarsila com o pintor italiano Waldemar Belizário. O objetivo era que Pagu deixasse a casa dos pais e ganhasse a liberdade que tanto almejava. O curioso é que o casal a superprotegida. Segundo Jason Tércio, “Tarsila a tratava como filha adotiva, ou boneca – penteava seus cabelos, pintava suas unhas com esmalte dourado, maquiava seus olhos, emprestava vestidos parisienses para ela. Mas Oswald não olhava para Pagu como pai adotivo.”3
De qualquer forma, a anulação do casamento foi conquistada em oito dias. Logo depois, o caso com Oswald começou. Não foi o primeiro encontro dos dois, ocorrido antes, em um episódio que ela descreveu como sem importância. Disse que se entregou “com indiferença, talvez um pouco amarga”, sem expectativa de qualquer vínculo ou continuidade. Tércio conta na biografia de Mario de Andrade que todos sabiam que eles eram amantes – exceto Tarsila, duas vezes traída, pelo marido e pela amiga.
Então, veio a segunda gravidez de sua vida, finalizada de forma trágica. “Um dia, eu matei a criancinha. Eu nada sabia dos cuidados que meu estado exigia. Eu ansiava por movimento e naquela tarde me atirei no rio Pinheiros. A correnteza era muito forte”, explicou.
Fico em dúvidas se ela teve tempo de processar tudo isso, pois ficou tão debilitada que não pôde nem ir ao cemitério se despedir do filho. Isolou-se, fez planos de casamento e, logo, engravidou de novo. Viveu, aparentemente, uma fantasia: “Acreditei numa aproximação mais intensa, num laço mais profundo de sentimento. Era mais nítida a possibilidade de realização do meu desejo de lar e de ternura”.
Pagu queria o que nunca teve – nem com a própria família, nem com os homens que encontrou. Oswald trouxe-a rapidamente de volta à realidade. No dia anterior ao casamento, encontrou-o com outra mulher, trazida para um ménage à trois. Aceitou. Fingiu. Engoliu, não o orgulho, mas a violência do que vivia. O casamento foi celebrado em um cemitério.
Pagu não teve nem entregou o amor puro que desejava, tampouco nutriu uma amizade por aquele com quem dividia a casa e a cama. Para ela, “Oswald não se interessava por mulher, mas por deslumbrar mulheres”. Definia assim o então marido: “Oswald não era pior do que os outros. Não era sequer vaidoso. E, se sempre apareceu como tal, nada mais era que defesa, e defesa de sua personalidade, torturada por uma série de complexos de inferioridade. Nunca teve uma ideia que não fosse ligada à necessidade de pôr à luz uma virilidade em que ele não acreditava.” Com o tempo, até asco ele lhe daria. Fartou-se de agressões.
3. A Maternidade
Com o nascimento de Rudá, Pagu conheceu um sentimento que a assustou. “Você pode dizer, como me disse uma vez Odila4, minha única amiga, que eu não amava meu filho”, escreveu à Geraldo. “Talvez ela tivesse razão. Eu queria amá-lo. Amá-lo até a renúncia do contato materno. Mas não soube amá-lo suficientemente.”
Seu relato deixa claro que ela o amava. E sentia a famosa culpa materna. Também sentia medo. A verdade é que, aos 20 anos, o nascimento do filho não cancelou o vazio que sempre sentiu – pelo contrário, o ampliou por medo do mal que poderia fazer a ele. Não queria usá-lo como muleta.
4. O Comunismo e o Socialismo
A muleta foi a política. Foi ela que despertou o idealismo em Pagu e a absorveu mais do que as outras paixões. O escritor Astrojildo Pereira foi quem a seduziu, mas quem a convocou à luta – ou à escravidão, como ela mesmo diria mais tarde – foi Luís Carlos Prestes, com quem conversou por “três dias e três noites” em Montevidéu. “Fez-me ciente da verdade revolucionária e acenou-me com a nova fé. A infinita alegria de combater até o aniquilamento pela causa dos trabalhadores, pelo bem geral da humanidade”, disse. Para ela, a libertação, em um mundo de verdade e de justiça, valia a própria vida.
E foi isso o que aconteceu. Pagu deixou de sofrer por Oswald, mas viveu outros abusos por esse novo amor. Em um primeiro momento, o comunismo resgatou-a da depressão, que provocava em si uma vontade de se machucar. Começou a frequentar as reuniões e se sentiu privilegiada ao integrar o partido. A primeira prisão aconteceu em Santos pouco tempo depois - a primeira de 23. Em algumas delas, foi colocada no isolamento, sem qualquer contato com humanos ou com o mundo externo.
Desde o início, ela aceitou missões, tarefas e obrigações – entre elas, desistir de “todas as ocupações particulares”, incluindo a separação absoluta de Oswald e o abandono do filho. Demorou a reconhecer que foi humilhada de todas as formas possíveis pelo próprio partido, desgostoso com a visibilidade conquistada pela militante de origem pequeno-burguesa. “Os jornais incentivavam isso com noticiário escandaloso em torno de minha pessoa. Eu era realmente a primeira comunista presa e, no Brasil, isso era assunto a ser explorado, principalmente não se tratando de uma operária”, explicou.
Foi seguida e perseguida. Caiu na clandestinidade, mudou de cidade, passou fome e, ao tentar usar suas conexões para se sustentar, viu seu trabalho intelectual sendo tirado de si pelo próprio partido. Tornou-se arrumadeira, copeira, lanterninha de cinema e operária de metalúrgica. Morou em um quarto alugado de uma senhora que pedia esmolas na rua. O local era infestado de baratas. Nem assim o partido ficava satisfeito. Colocava-lhe à prova. Pediu que se prostituísse para obter informações. “Sempre pensei em lutar abertamente pela liberdade do proletariado. Gritar aos quatro cantos a minha decisão, a minha opinião. Atacar o inimigo frente a frente, orgulhosa e vibrante como os bons ladrões dos folhetins, que roubam deixando o nome estampado nos locais de delito. Combater lealmente, fiel a um código de honra — sem timidez, hipocrisia, sem mascarar minhas ações. Mas eis-me membro do Comitê Fantasma, obrigada à dissimulação, à intriga, ao fingimento, a toda espécie de maquiavelismo repugnante…”, relatou à Geraldo.
Ela reconheceu, em sua Autobiografia Precoce, os erros e excessos que cometeu. Ainda assim, à época, manteve até onde pode a sua fé. Embarcou sozinha para a Rússia, em uma viagem de navio com paradas em outros países. Um deles foi a China, onde Pagu se impressionou com a miséria. A decepção se acentuou na União Soviética. Deslumbrou-se com a propaganda, mas a cortina do ideal revolucionário logo se abriu ao ver crianças sujas, pedindo esmola, enquanto os líderes do Partido desfrutavam do bom e do melhor, muitas vezes, em hotéis de luxo. As justificativas de sabotagem ao socialismo, para ela, não faziam sentido. “Crianças vagabundas num país sovietizado?!”, questionava. Ela já não estava mais cega.
4. O Terceiro e Último Casamento
Em Geraldo, ela encontrou a amizade e o amor que, aparentemente, sempre desejou. Com ele, ela teve o seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz. Quando se casaram, sua saúde já estava bem debilitada após uma temporada de mais de quatro anos na cadeia. Tentava alçar outros voos na política, como candidata à Câmara pelo Partido Socialista Brasileiro. Sofreu. Tentou suicídio, em 1949. Pegou um revólver e disparou. Acertou o próprio olho.
Quando desistiu enfim da política, abandonou o apelido dado por Bopp. Foi trabalhar com o marido no jornal A Tribuna, de Santos, e retomou sua vocação para as artes. Tornou-se uma das principais incentivadoras do teatro em Santos e, pelas mãos dela, talentos se revelaram. Entre eles, o diretor Plínio Marcos. Contribuiu, ainda, para a construção do Teatro Municipal Braz Cubas.
Tentou suicídio uma segunda vez, em 1962, ao receber o diagnóstico de câncer. Quantas vidas ela teve em 52 anos. Foi enterrada em Santos.
PS1: A Autobiografia Precoce não menciona o período vivido por Pagu em Paris, onde se filiou ao partido comunista francês e foi presa. Quem desenterrou detalhes dessa história foi Adriana Armony, autora de Pagu no Metrô, livro que ainda não tive a chance de colocar as minhas mãozinhas. Nessa temporada, que teria culminado com a decepção com o comunismo, ela teria conhecido figuras ilustres, como André Breton, Jean-Paul Sartre e outros surrealistas.
PS2: Rudá Andrade, filho de Pagu e Oswald, fez história no cinema brasileiro. Foi um dos fundadores da Sociedade de Amigos da Cinemateca, diretor do MIS e professor da ECA. Além de cineasta, escreveu Cela 3 -°A Grade Agride, sobre os 10 meses de prisão na França por posse e tráfico de cocaína. Ele sempre negou sua culpa. Ganhou o Jabuti por esta obra e morreu em 2009. Obituário completo aqui.
PS3: O filho de Pagu e Geraldo Ferraz morreu em 2013. Seguiu a carreira dos pais, tanto no jornalismo, quanto na crítica literária e tradução. Preservou as memórias da mãe ao coordenar a construção do site www.pagu.com.br e do Centro de Estudos Pagu Unisanta. Era querido e conhecido como Kiko. Obituário completo aqui.
PS4: Carla Camurati encarnou essa personagem da nossa história no longa Eternamente Pagu, dirigido por Norma Bengell e lançado no fim da década de 1990.
PS5: Há rumores de que Pagu também seria a responsável pela disseminação da soja para o Brasil. A história foi propagada por Raul Bopp, então cônsul do Brasil. Durante a viagem à China, ela teria ficado amiga do Pu Yi, último monarca chinês, de quem assistiu à coroação. Também se aproximou de Madame Takahashi, casada com o diretor da companhia South Manchurian Highway, que lhe entregou 19 saquinhos de sementes da leguminosa, plantados posteriormente em um viveiro em São Paulo. Como tudo que envolve Pagu, há controvérsias nessa história. O Nexo conta direitinho essa história.
PS6: Hora da autopromoção, as dores e amores da solteirice é o mote do meu Desafogo, organizado em quatro partes (I, II, III e IV). Disponível no Insta e no Doce Viagem.
PS7: Pagu também faz parte do meu primeiro livro, Menina Pra Casar, em pré-venda no site da Editora Letramento. Conheça a história da Maria aqui.
Pagu. Autobiografia Precoce. Companhia das Letras. São Paulo, 2020, 1ª edição.
Filho de Pagu e Oswald de Andrade.
TERCIO, Jason. Em busca da alma brasileira: biografia de Mario de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
Amiga e ativista