Seguindo com o meu hackeamento (para não dizer obsessão!) e divagação sobre o Clube dos Cinco1, deparei-me com esta carta de Mário de Andrade2:
“São Paulo, 4 de julho de 1929.
Tarsila,
Espero que esta carta seja lida confidencialmente apenas por você e Osvaldo pois que só a você é dirigida.
Acabo de receber por Anita o convite que você me faz e que, feito com o desprendimento e o coração tão maravilhoso de você, inda3 mais me entristece. Mas eu não o posso aceitar. Por isso mesmo que a elevação de amizade sempre existida entre você, Osvaldo, Dulce4 e eu foi das mais nobres e tenho a certeza que das mais limpas, tudo ficou embaçado pra nunca mais. É coisa que não se endireita, desgraçadamente pra mim.
Quando esta carta foi escrita, Mário já havia rompido com Oswald, ainda casado com Tarsila, que adotou, diversas vezes, um tom mais frio e até irônico na correspondência com o amigo, claramente intoxicada pelo amante/marido, que lia todas as suas correspondências.
Oswald é descrito por vários biógrafos, como ciumento e possessivo. Seu narcisismo não tinha limites. Mary del Priore, autora de Tarsila – Uma Vida Doce-Amarga, conta que ele, inclusive, tomava como suas frases de outros autores. “Marinette, mulher de Paulo Prado e dama muito culta, o pegou algumas vezes nessas “coincidências”. E contou: Oswald, “como era seu hábito, tomava dos outros como seu.” Quando corrigido, ficava “queimado”. Ela diria mais tarde que ele sofria da necessidade infantil de se sentir o centro de todas as atenções.”5
Nas cartas enviadas a Mário, ele também floreava a vida que levava em Paris, distorcendo amizades ou simulando intimidades com figuras que fariam o amigo salivar.
Mas devo confessar a você que sob o ponto-de-vista de amizade, único que me pode interessar, como indivíduo, nada, absolutamente nada se acabou em mim. Se deu apenas uma como que transposição de planos, e aqueles que faziam parte da minha objetividade cotidiana, continuaram amigos nessa espécie de ambiente de anjo em que o espírito da gente descansa mais, povoado de retratos bons. E então eu, que não fui feito pra esquecer, não será possível jamais que eu me esqueça nem de ninguém nem de nada. Nenhum sentimento desagradável permanece em mim e se acaso alguém confiar a você alguma queixa ou acusação feita por mim contra quem que seja de sua família, eu garanto que mente. Pedi aos meus companheiros de vida e até a amigos que nem Couto de Barros, que não me falassem em certos assuntos.
Eram amplamente conhecidas as maledicências que Oswald espalhava sobre Mário. Antonio Candido chegou a dizer que o tal fazia “piadas terríveis e divertidas, que corriam o mundo”6. Jason Tércio, biógrafo de Mário e um dos protagonistas da newsletter #8, conta que o que os “antropófagos [grupo criado por Oswald, para promover o ‘verdadeiro espírito de brasilidade’] mais criavam era difamação”, geralmente com pseudônimos. O “amigo” chamou Mário de “Miss São Paulo traduzido em masculino” e “cérebro mais confuso da crítica contemporânea”. O pingo d’água pode ter sido a publicação na Revista da Antropofagia de uma entrevista, intitulada “Miss Macunaíma”, em que uma índia fictícia afirmava ter tido contato com um “moço brasileiro”, com quem teria passado “noites inteiras triturando sintaxes, advérbios, substantivos, períodos, vírgulas, parênteses, artigos e pronomes.” Oswald, segundo Jason adorava mexer com a sexualidade de Mário. Não o poupava de nada – nem a ele nem a outros amigos, também atacados en suas publicações.
Apenas, Tarsila: esses assuntos existem. E como os podemos esquecer, vocês e eu, que todos conservamos nosso passado comum? E quanto a mim, Tarsila, esses assuntos, criados por quem quer que seja (essas pessoas não me interessam), como será possível imaginar que não me tenham ferido crudelissimamente? Asseguro a vocês – tenho todo o meu passado como prova e vocês me conhecem espero que bem – que as acusações, insultos, caçoadas feitos a mim não podem me interessar. Já os sofri todos mais vezes e sempre passando bem. E nem uma existência como a que eu levo pode se libertar deles. Desque resolvi publicar ‘Paulicéia’, de quem só um poema exposto provocara o maior enxurro de estupidez e presumidos insultos de que se enaltece a história literária brasileira, desde então me revesti dessa contemplatividade cínica que nos permite, sem inquietar a sinceridade com que caminhamos pra realização de nós mesmos, passarmos incólumes no meio de certos heróis. Não me atingem e, de resto, não os leio.
Tarsila, segundo sua biógrafa, a crítica de arte Aracy Amaral, confirmou à Veja7 o rompimento de Oswald e Mário, que recusou todas as tentativas de aproximação. Diante da negativa, o ex-marido de Tarsila continuou a insultar o amigo. Mário nunca partiu para o confronto. Não desmerecia seu antagonista - só preferiu ignorar os deboches e manter o respeito, não só pelo que tinham vivido, mas também pelo talento de Oswald. O que lhe doía não eram as críticas à sua obra, já que o próprio Mário, como todo bom perfeccionista, era o seu principal algoz. O que o autor de Macunaíma não tolerava mais eram os ataques homofóbicos.
Mas não posso ignorar que tudo foi feito na assistência de um amigo meu. Isso é que me quebra cruelmente, Tarsila, e apesar de meu orgulho enorme, não tenho força no momento que me evite de confessar que ando arrasado de experiência.
Não posso deixar de mencionar que Oswald, o anti-herói da turma, era casado com Tarsila quando começou a ter um caso com a moça que ela tratava como filha e hospedava em sua própria casa. Sim, estou falando de Pagu, que em sua Autobiografia Precoce explicou que os dois eram conectados por “afinidades destrutivas”. Ela disse nunca ter tido expectativa de um amor, mas de uma amizade, também não concretizada. “Sabia que Oswald não me amava. Ele tinha por mim o entusiasmo que se tem pela vivacidade ou por uma canalhice bem-feita. Ele admirava minha coragem destrutiva, a minha personalidade aparente. Procurava em mim o que outras mulheres não possuíam”, escreveu. “Por isso mesmo, sempre procurou alimentar minhas tendências que podiam provocar reações estranhas, aproveitando minhas necessidades combativas com deturpações de movimento. Oswald não tinha nenhum pudor no gozo de detentor de objetos raros."
De certa forma, ele repetiu com ela o que já tinha feito com a pintora nascida em Capivari (SP). “Oswald não hesitou em usar Tarsila para realizar suas ambições sociais. Não só através de intelectuais e artistas franceses, mas também junto à sociedade tradicional de São Paulo, onde muitos o evitavam, inclusive a família dela”, explica Mary del Priore, no já mencionado livro. Ela percebia o comportamento inadequado do então marido, mas vivia o que a Psicanálise chama de Desautorização do Processo Perceptivo, pois tentava justificar os excessos dele, também em um mecanismo de autopreservação.
Eu sei que fomos todos vítimas dum ventarão que passou. Passou. Porém a árvore caiu no chão e no lugar duma árvore grande, outra árvore tamanha não nasce. É impossível.
Em seu A Vida Secreta das Emoções, a filósofa italiana Ilaria Gaspari nos recorda de que a antipatia é uma emoção inevitável, que cresce quando reprimida. Está presente tanto em nossas vidas quanto na ficção. “As histórias nascem do atrito, as antipatias são o seu combustível”, diz.
Para a filósofa, nem sempre o antipático é o vilão - e, talvez, esteja aí o segredo para tantas mulheres terem cedido aos apelos de Oswald ou, então, para colecionarmos alguns malvados favoritos (Raymond Reddington/The Black List, Bellatrix Lestrange/Harry Potter, Moriarty/Sherlock...).
Quer aproveitar este momento e compartilhar quem é o seu malvado de estimação? ;)
É é o próprio herói, arrancado do seu mundinho ordinário por uma causa nobre, quem, muitas vezes, nos causa o tal incômodo. Ilaria explica: “Os romances estão repletos de protagonistas insuportáveis: Emma Bovary não é decerto um exemplo de simpatia, e mesmo assim acompanhamos sua dor, sua queda, choramos, quando morre. Holden Caulfield, que aliás muitos adoram, é bastante cheio de si; Anna Karenina é uma passivo-agressiva; Marcel, o narrador da Recherche, faz coisas terríveis com a pobre Albertine, é um sádico, um inafetivo, um ciumento patológico; ou ele é apenas insensível? Não importa. Quando lemos, experimentamos antipatias autênticas pelos mais variados alvos.”
Eu peço a vocês licença pra cumprimentá-los quando nos encontrarmos. Assim como desta carta e do que a motiva ninguém saberá por mim, tenho certeza que corações nobres como os de vocês hão-de sentir esse pudor de não dar azo a que os outros façam de nós e dum passado tão lindo nosso, o assunto deles.
Peço que me recomende respeitosamente aos de sua família e enumero uma carícia toda especial a Dulce que no meu mundo faz parte do Sol.
A filósofa italiana também me deu aquele cutucão ao reforçar que eu, assim como qualquer ser humano, também posso carregar o predicado da antipatia. Afinal, ninguém é unanimidade nesse mundo. E esse sentimento incômodo, gerado por razões nem sempre aparentes, talvez por preconceito, instinto ou um comportamento irritantemente peculiar, desumaniza o outro ao ignorar as cicatrizes que inevitavelmente colecionamos com as nossas batalhas diárias.
Como toda emoção, a antipatia deveria mais nos ensinar do que nos definir. “Por outro lado, comecei a me permitir correr o risco de ser antipática quando soube (graças à literatura, que me mostrou o quanto as antipatias são perdoáveis) que os limites da minha identidade não estavam ameaçados pelos olhares tortos, mesmo que às vezes assim parecesse”, ensina Ilaria.
Assim, talvez, um dia eu consiga ler uma das obras de Oswald, como “Memórias Sentimentais de João Miramar”, identificando entre as linhas dessa história o escritor cuja inteligência Mário tanto admirava. Ou, então, deparar-me com a tela Abaporu e não achá-la a mais perfeita tradução do homem que devorava tudo que via pela frente.
E paro porque afinal tudo isso é muito triste e pouco digno dos seus olhos e coração que só podem merecer a felicidade.
Respeitosamente,
Mário de Andrade
Fica a certeza de que “tudo isso é” mesmo “muito triste”, embora muito comum. As intrigas, os rompimentos, as antipatias que atravessam décadas e superam as páginas dos livros. Façamos, então, como Mário, que perdoou mas nunca esqueceu. Procuremos aquilo e aqueles dignos dos nossos corações, porque a felicidade todos merecemos.
Para não deixar margem à confusão, Clube dos Cinco também é um filme dos anos 1980, dirigido e criado por John Hughes. Aqui, no entanto, eu me refiro ao grupo formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Menotti del Picchia.
Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral / organização, introdução e notas Aracy do Amaral. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2001.
O amor ao Brasil, em todas as suas dimensões e complexidades, fazia Mario adotar alguns coloquialismos, não só em suas cartas, mas também em artigos, ensaios e livros. Até nomes, como Oswald/Osvaldo, ele abrasileirava.
Filha de Tarsila.
Del Priore, Mary. Tarsila: uma vida doce-amarga. 1ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2022.
Segundo Aracy do Amaral, citando "Vários Escritos” (página 69).
Edição de 23 de novembro de 1972.