Eu me lembro bem da primeira vez em que vi essa tela. Foi em 2019, durante a exposição “Tarsila Popular”, no MASP. A fila para comprar ingresso e entrar na sala era enorme, mas poucas pessoas paravam em frente a esse quadro. A concorrência, afinal, era grande. Havia pinturas e desenhos mais famosos, logo mais disputados.
Antes de ir embora, eu dei mais uma espiada na “Figura Só”. Tirei a foto acima e bati o martelo que essa era, definitivamente, a minha obra preferida da mostra. Eu me senti conectada à solidão de Tarsila – ou assim eu pensava, influenciada sobre a fofoca mais famosa da vida da pintora, de quando Oswald, seu grande amor, a trocou pela jovem Pagu, sua pupila.
Depois dessa exposição, visitei a Casa Mário de Andrade, participei de um curso e li dois livros recomendados por eles (a biografia de Mário, escrita por Jason Tercio e comentada aqui, e as correspondências dele com Tarsila, organizadas por Aracy Amaral e base desse ensaio).
Mário.
Tarsila.
Anita.
Oswald...
Quanto mais eu os conhecia, mais a vida e as obras desses personagens (principalmente, dos três primeiros) me fascinavam. Em uma visita não programada à Livraria da Tarde, não resisti ao livro Tarsila – Uma Vida Doce-Amarga, encomenda da Editora José Olympio à historiadora Mary del Priore. O lançamento da obra aconteceu em 2022, para marcar a comemoração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna. Tarsila não participou da polêmica programação. Morava em Paris à época, mas logo que se uniu ao grupo, ganhou a marca de “modernista”.
Em uma palestra recente, organizada pelo historiador Paulo Rezzutti, na Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, em São Paulo, Mary contou que teve pouco tempo para pesquisar e escrever o livro. Ainda assim, o mergulho nos arquivos de jornais ajudou a decifrar um pouco mais dessa personagem famosa, porém discreta, da nossa história.
O fato mais conhecido da vida pessoal de Tarsila é o relacionamento com Oswald, mas esse é somente um dos pontos de inflexão de sua história. É um ponto importante, é verdade, que pode ter definido seu curso, mas de forma alguma o resume. As cores de Tarsila podem parecer decorativas, como alguns a acusaram na época, mas são a mais pura expressão da superação de tragédias e dos tons de sua alma.
1. André, a marginalização e o início
A menina nascida no interior, que frequentou um dos mais prestigiados colégios privados de São Paulo, teve seu casamento arranjado com um primo da mãe. Em menos de um ano, o casamento naufragou. O site oficial da pintora conta uma história: diz que Tarsila morava em Barcelona com o marido, que queria que ela só se dedicasse à casa. Indignada, ela teria esperado a filha nascer para se mandar para cá. Mary diz que o verdadeiro motivo sempre foi abafado, mas uma dramaturga famosa teria jurado que o marido fazendeiro de Tarsila fugiu com a cunhada. Ela foi abandonada com um bebê nos braços.
Na época, a vítima não era tratada como tal. Mais do que alvo de fofocas, passou a ser persona non grata em vários ambientes, inclusive o familiar. Mary explica: “Para Tarsila, o desafio doravante era estancar as fofocas, poupar o nome da família, disfarçar a humilhação e não perder a aparência de moça séria. Separada, porém honesta.”, diz. E reforça: “Ela se tornara um mau exemplo para as senhoras bem-casadas, ou pelo menos para aquelas que assim se julgavam.”
A solução foi deixar o interior e se exilar em São Paulo. Não podia chamar a atenção, muito menos trabalhar, o que denotaria, além de tudo, um desespero financeiro. Preencheu seu tempo entre aulas de piano e de pintura. O primeiro sempre foi uma paixão da mãe; a pintura, veja só, ela descobriu nessa época. Até então, como boa moça prendada, ela só desenhava. Segundo Mary, ela temia o palco e o público, logo as telas se tornaram o refúgio perfeito. Viveu nessa escuridão colorida por mais de uma década, quando se mudou para Paris para estudar. A França ditava regras para o mundo todo e, mesmo do outro lado do Atlântico, Tarsila começou a construir sua marca. As pessoas daqui comentavam sobre a sua obra e a carreira que construía lá.
2. Oswald, o abandono e mais um início
Tarsila tinha 36 anos quando chegou a São Paulo meses depois da famosa Semana de 22. Foi Anita quem a apresentou aos demais – inclusive, à Oswald, o dono de uma garçonnière, de um Cadillac e de um bocado de sedução. “Não se sabe se Tarsila conhecia o rosário das conquistas de Oswald, que terminavam sempre em cruz para a mulher”, escreveu Mary. O homem fazia estrago. No mesmo ano em que conheceu Tarsila, tornou-se viúvo de uma jovem jornalista, vítima de um aborto malfeito. Não foi a primeira esposa dele, nem seria a última.
Fato é que Tarsila se apaixonou e, nas palavras de Mary, desabrochou com esse amor. Tornou-se a musa de todos, a mulher elegante do autorretrato, a paixão platônica de Mario, que encheu seu estúdio de margaridas.
A paixão arrebatadora atravessou o Atlântico, já que os dois se estabeleceram em Paris, meses depois, onde tinham mais liberdade. “O casal escolheu viver sua paixão longe dos olhos da conservadora São Paulo. Nunca é demais lembrar que o Código Civil só dava três opções à mulher separada ou desquitada: voltar para a casa dos pais, onde seria criticada pelo fracasso do casamento; entrar para a prostituição, se fosse pobre e sem preparo profissional; unir-se ao homem que viesse a amar, sabendo que teria o repúdio da sociedade “por não ser casada”. Ela escolheu a terceira opção”, explicou Mary.
Viveram sua primavera em Paris – ela, trabalhando; ele, fazendo negócios e política, aproveitando o encanto que ela despertava nas mais diversas figuras. Trocavam cartas e bilhetes assinados com pseudônimos, como “Albertina ou Porquéria”; e ele, como “Onofre ou Juzero”.
O casal se uniu a Mario e outros amigos para apresentar o Brasil ao poeta Blaise Cendrars. Percorreram as cidades históricas de Minas, em uma viagem que fez Tarsila (re)descobrir o próprio país e se apaixonar por ele. Queria aprender com aqueles que “não foram corrompidos pelas academias.” Segundo Mary, ela dizia que “pintar caboclos do Brasil não é ser artista brasileiro, como não é ser artista moderno aquele que realisticamente pinta máquinas e deforma figuras.”
Após 26 anos, muitos dos quais vividos com pavor de escândalos, Tarsila conseguiu a anulação do casamento com o fazendeiro. Em 30 de outubro de 1926, casou-se com o grande amor da sua vida, em uma cerimônia que teve o então presidente da República Washington Luís e o então governador de SP Júlio Prestes como padrinhos. Começaria uma vida de ostentação, entre a cidade e o campo, interrompida três anos depois por duas tragédias. A primeira foi o crack da Bolsa de Nova York, que esvaziou os cofres nos quatros cantos do planeta. Oswald foi perseguido por credores e chegou a levar um feiticeiro para viver com ele e a esposa na fazenda em Itupeva. Foi Antenor, aliás, quem contou à Tarsila que o seu marido tinha fugido com a pupila Pagu.
O abandono se estendeu para outros círculos – à família e aos amigos. Quebrada e novamente sozinha, ela assumiu os seus problemas: vendeu as obras de arte que tinha, foi trabalhar na Pinacoteca e hipotecou a amada fazenda.
3. Osório, a prisão e um novo pensamento
Oswald não foi o seu único amor. Tarsila voltou a amar e a “causar”. “Achei-o inteligente e gostei da forma espontânea, bem própria do nordestino, de dizer com franqueza seus pontos de vista”, disse a pintora sobre Osório César, um psiquiatra culto e comunista. Com ele, viajou à União Soviética, onde apresentou suas obras e conseguiu vender apenas um quadro. Foram dela a capa, as ilustrações e até as fotos da obra “Onde o Proletariado Dirige”, escrito por ele e dedicado a ela.
A situação financeira de Tarsila não tinha melhorado. Teve que se desfazer do apartamento de Paris, com tudo dentro, e não teve vergonha de arregaçar as mangas para pintar paredes e portas.
Com Osório, ela desenvolveu o seu olhar para as questões políticas e sociais. Desta temática surgiu alguns de seus quadros mais conhecidos.
O retorno ao Brasil foi marcado por mais polêmicas. Ela, que começou a dar palestras sobre a miséria e a condição de vida operária, entrou na mira do Governo e acabou presa, por dois meses, no Presídio do Paraíso, em São Paulo. Segundo Mary, o relatório policial, de 30 de julho de 1933, a descrevia como “a maior e mais arrojada comunista dentre todas as comunidades comunistas nacionais. É a maior poque impressiona e quase converte todos que a ouvem. É também a mais arrojada, porquanto os seus parceiros procuram arrabaldes e lugares ocultos para pregarem o comunismo, ao tempo em que ela se serve de salões nobres, onde, sem rodeios, ensina teórica e praticamente a doutrina vermelha.”
Tarsila desesperou-se. Pediu ajuda à família e, dessa vez, além dos irmãos, até o pai lhe virou as costas. “Viva a dignidade da prisão”, escreveu em um bilhete. O amor com Osório também sucumbiu.
4. Luiz Osório, a carreira e a benção
Em 1933, aos 46 anos, Tarsila foi ao Rio para uma retrospectiva de sua carreira. A ideia da exposição era levantar recursos, mas acabou vendendo somente uma obra. O grande arremate foi do seu coração, pelo jornalista Luiz Martins, 20 anos mais novo. A família, claro, desaprovou, mas os dois permaneceram juntos por duas décadas. Moraram no Rio e depois em São Paulo, no interior e na capital.
Nesse período, tudo aconteceu com ela. Foi novamente acusada de ser espiã, dessa vez do Serviço Secreto do General Góis Monteiro. Fez o que pôde, não só para salvar a sua fazenda, mas também os negócios do pai. No mundo das artes, tornava-se cada vez mais esquecida. Não é esse o destino que impomos aos nossos heróis?
Luiz a deixou por uma prima de segundo grau, viúva, 35 anos mais jovem que Tarsila. A fofoca foi, de novo, parar nos jornais, mas a pintora pairava acima das pequenezas da vida. Deu ao casal sua benção e manteve o ex-amor como um amigo. Até o fim de sua vida, Luiz a visitou a cada 15 dias.
5. A neta, a filha e Chico Xavier
Tarsila estabeleceu-se, então, em São Paulo, em um apartamento pequenino, dividido com a filha. Dulce se tornou sua grande companheira, principalmente após a morte da filha Beatriz. A neta de Tarsila afogou-se aos 10 anos, em Petrópolis, onde passava férias. Para o túmulo, a artista esculpiu um anjo. Essa era Tarsila, criada em um colégio de freiras e elevada pela fé nas adversidades.
Segundo Mary, mãe e filha passavam o tempo recitando poesia e estudando grego antigo. Tarsila era muito culta. Na época em que morou no Rio escreveu para os “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand. Sua inspiração era, não só as histórias que viveu em Paris ou com o Clube dos Cinco, mas também os verbetes que tirava dos dicionários que colecionava. Rezava, muitas vezes, em latim.
O destino não se cansava de testar Tarsila. Em 1965, uma cirurgia malsucedida na coluna a deixou na cadeira de rodas. No ano seguinte, Dulce morreu por complicações da diabetes. Sozinha, não esmoreceu, manteve sua rotina. Aproximou-se do espiritismo por meio de Chico Xavier, que se tornou seu grande amigo. Além de cartas, ela chegou a fazer um quadro para ele. Passou a vestir mais branco, sem perder a vaidade.
As cores de Tarsila
Em 1940, o amigo Mário de Andrade saiu em defesa da amiga dizendo que sua arte não era “decorativa”, destacando que ela baixou os tons e a paleta para abordar temas mais sociais. “Ela não é nem mais nem menos decorativa que um quadro cubista ou abstrato, nem mais nem menos decorativa que a Ceia de Leonardo ou este afresco de Giotto.”, escreveu na Revista Acadêmica1.
Durante a palestra, Mary destacou que nós facilmente nos esquecemos de que Tarsila foi uma mulher do século XIX, com uma infância no campo e uma criação católica, cuja principal missão era formar mulheres dentro dos valores e dos costumes de então. A maior ambição da época era fazer dela e de qualquer moça a esposa de alguém.
Não era esse o destino de Tarsila – não por falta de dedicação ou talento. Ainda assim, ela se tornou Tarsila do Amaral, uma mulher com coragem para quebrar padrões e romper os bons costumes para atender ao seu coração, não aos desígnios da família e da sociedade. Mary diz que, mais do que uma mulher bonita, ela era descrita como doce e determinada. Alguns a chamam de ingênua pelos romances, mas algo mais corajoso do que não deixar de amar?
Quando penso em Tarsila, a figura solitária do quadro ainda me vem à mente. O que me conecta a ele já não é mais a solidão, mas a coragem de enfrentar todas as ameaças do mundo. Ela viu e expressou cores na escuridão.
A escuridão que a consumiu. Ela faleceu aos 83 anos, após ser diagnosticada com depressão. O reconhecimento ao seu trabalho aconteceu tardiamente, pelas mãos da crítica de arte, também sua biógrafa, Aracy Amaral, que produziu a Retrospectiva “Tarsila, 50 anos de pintura”, no MAM-RJ e MAC-SP, em 1.969
Recusou a escuridão de todas as formas possíveis. Repousou em seu tumulo vestida de branco e deixou um legado colorido. “E se tudo isto é decorativo, que o seja, por Deus!... É decorativo porque a felicidade é mesmo decorativa neste mundo, um completamento ulterior que, por ser ulterior, a imbecilidade humana sempre deixou... para amanhã. Admirável Tarsila que, entre seus possíveis sofrimentos e suas lutas, tem sempre a generosidade de nos dar uma pintura feliz, gostosa e boa, capaz de vencer este sol e iluminar a escureza de uma grota, nacional e insolente como o voo do guará e o gosto do Cambuci. A verdade falou por minha boca.”, lacrou Mário.
PS: O ciclo de palestras organizado pelo Paulo Rezzutti tem outras edições, também com mulheres incríveis. Vale conferir a programação aqui.
PS2: Revelei mais gostos de Tarsila neste post aqui, ilustrado com mais um autorretrato dela.
“Decorativismo”, Revista Acadêmica, n51. Rio de Janeiro, set., 1940.