“Desculpe, mas eu precisava muito falar com alguém”, disse a moça no saguão de um centro cultural. Quando eu me sentei ao seu lado, à espera de uma amiga, nada chamou minha atenção. Seu rosto estava escondido pelo cabelo liso tão longo quanto suas pernas e braços. Em nenhum momento, ela demonstrou notar a minha existência. Até aquele momento.
“Oi?”
Foi tudo que consegui emitir ao ser pega tão desprevenida por aquele pedido. Ela me fitou com hostilidade.
“Você precisa de algo?”, questionei, já me perguntando se tinha ouvido vozes (longe de mim duvidar de eventos sobrenaturais, ainda mais diante deste calor extremo). A hostilidade no rosto dela virou indignação. Como eu não tinha percebido que ela estava em uma ligação? Como eu poderia imaginar que, debaixo daquela cabeleira platinada, havia dois fones sem fio? Quem é que inventou isso e tornou nossa vida ainda mais difícil?
“Amiga, você não sabe...”, disse, “acabou. Acabou. A-C-A-B-O-U.”
Eu tentei dar privacidade à colega, mas não havia outro canto vazio, protegido do sol e banhado por uma brisa fresca, que não fazia os meus cabelos dançarem como nas campanhas da L’oreal, mas davam aos meus fios suados certa dignidade.
“Amiga, você não sabe... ele me cancelou. Deixou de ser meu amigo e, aposto que só não me bloqueou, porque queria que eu soubesse disso, que não somos mais conhecidos, que não sou nada para ele. Ora, o que aconteceu? O que aconteceu foi que ele se ofendeu, sem ter o direito de se ofender, porque esse papel cabia a mim, você sabe disso, não sabe?”
Pelo tempo entre uma frase e outra, eu cheguei a duvidar se existia uma pessoa do outro lado com tempo hábil para ouvir, ponderar, perguntar, replicar...
“Então, ele tentou me ver no Natal. Eu demorei para responder a mensagem e cheguei até a pedir desculpa, já que odeio quando isso comigo. Amiga, você não sabe, ele disse que estava tudo bem, que sabia que eu não desapareceria, que a minha resposta sempre chega. Falou que nem se preocupava com essa possibilidade. Não gostei da resposta, sabe? Na hora, eu nem sabia o porquê, só sei que me bateu uma azia, mas deixei passar.”
Daí eu me lembrei de que há amizades exatamente assim, não há?
Ok, talvez no singular, mas sabe aquela amiga que nos entende só com o olhar, que lê as entrelinhas, que diagnostica o tom de voz, que identifica que há algo errado pela forma como respiramos? Aposto que essa nova geração, nascida na tecnologia, já desenvolveu um sétimo sentido, capaz de decodificar os algoritmos femininos, o grito de socorro por trás de uma mensagem ou, dããã, de um meme ou emoticon.
“Amiga, você não sabe, ele sugeriu um encontro para colocar o papo em dia. Quando fomos marcar, ele começou a olhar a agenda. Achei estranho e descobri que ele tinha a escala de plantão da namorada enfermeira. Eu fiquei indignada. Não podia simplesmente ignorar isso. Quem ele acha que eu sou? Não, amiga, não. Ele diz que não está fazendo nada de errado, só não quer provocá-la ou ter que lidar com uma situação desagradável. Amiga, você não sabe, ele teve coragem de dizer na minha cara que eu não sou concorrência para a relação dele. Disse! Disse isso na minha cara! Sabe todo o amor que eu dei para ele? Sabe todo o amor que eu ainda reservava para ele?”
Juro que a essa altura eu nem respirava. O ar ficou pesado. Rarefeito. Pedi a Deus para que a minha amiga atrasasse ainda mais. Quase mandei mensagem: “não corra, não faz bem.” Eu simplesmente não podia perder o resto da história. Eu nunca gostei de esperar, mas ali eu decidi que havia chegado a hora de ressignificar a minha relação com o tempo. Quem disse que é ruim mesmo? Que é perda de tempo? Que é falta de respeito?
“Amiga, você não sabe, naquele momento, eu peguei esse amor de volta. Por impulso, mas com convicção. É meu. Devolva-me já!”
Ah, neste momento, eu juro pelo que há de mais sagrado, a minha vontade era gritar bem alto: ponto para as meninas! Até cogitei um abraço empático e celebrativo, mas eu ainda me recordava do olhar hostil dela, que logo afastou até a possibilidade de um tapinha no ombro ou um joinha distante.
“Eu falei que não me sentia bem com aquela situação e por isso o encontro estava cancelado. Amiga, você não sabe, eu tentei explicar como eu me sentia, como enxergava tudo aquilo. Eu não gostaria que o meu namorado fizesse algo pelas minhas costas, ainda que fosse para me poupar. Não é assim que se constrói um relacionamento. Então, por que eu faria isso com outra mulher? O compromisso é dele, eu sei, mas eu teria uma participação nessa bagunça, não teria?”
“Amiga, você não sabe, eu falei que ainda tinha sentimentos por ele e, por isso, eu precisava me escolher, eu precisava ser minha amiga antes de ser qualquer coisa para ele. Ele disse que eu era livre e me desejou um feliz ano novo sem ele. Sim, sem ele. Fiquei pistola, mas o meu coração também se esfacelou pelo chão. Doeu, mas não passei recibo. Desejei o mesmo. Só depois eu descobri que ele me excluiu. Precisava? Não precisava. A gente viveu tanta coisa. Não era para acabar assim.”
Naquele momento, eu queria poder dizer àquela jovem que a gente nunca vai conseguir explicar o comportamento do outro, já que a gente mal consegue dar conta do nosso. Haja terapia, autoajuda, meditação, oração, banho de ervas, simpatia. O ser humano é uma incógnita. A vida é essa travessia torta, pontiaguda, agridoce, obtusa. Viver é sobreviver à erupção de um vulcão de emoções contraditórias, muitas vezes sentidas simultaneamente. Antes que eu pudesse formular uma teoria mais madura, à altura dos meus 40 e tantos anos, ela demonstrou que não precisava de conselho algum.
“Amiga, você não sabe, eu quero amar e ser amada. Honestamente. Até pensei em baixar um desses apps que eu odeio, mas resolvi pedir a Deus um sinal se esse é mesmo o caminho. Orei e, quando liguei a TV, vi a propaganda de uma nova série: Golpista do Amor. Juro, amiga. O cara dá golpe por esses apps. É uma resposta ou não é?”
O que eu poderia acrescentar?
“Não satisfeita, quase entrei na fila de uma cartomante. 10 reais a pergunta. Comecei a pensar o que queria saber, se era sobre mim ou sobre ele, e fui inundada pela dor, pela raiva, pela tristeza. Não era para ter terminado assim. Não era! Meu olho encheu de lágrimas. Tô sofrendo tanto, pensei comigo, mas a frase saiu alto. E não era a minha voz. Amiga, você não sabe, o tiozinho do violão estava me encarando. É, sabe aqueles cantores de rua? Então, ele piscou para mim e continuou: Amor, e o que é o sofrer para mim que estou jurado pra morrer de amor?”
O Universo tem um senso de humor...
“Amiga, você não sabe, eu entendi tudo: meu destino está selado, estou jurada pra morrer de amor.”
Sem argumentos para tal revelação, eu me levantei e a deixei sem que ela notasse minha ausência. Com o tempo, ela descobriria por conta própria que as histórias de amor têm lá suas similaridades com os hits que nos tomam por arrombo e parecem insubstituíveis. Com essas músicas, e por essas músicas, choramos, dançamos, crescemos por uma temporada. Longa ou curta, não importa. São parte de nós, parte da playlist de uma existência.
PS: Em homenagem a essa paulistana anônima (e ao senso de humor do Universo):
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