Eu sei que o Dia do Índio, comemorado em 19 de abril, é uma data folclórica. Contudo, peço licença para compartilhar um pouco do que aprendi em encontro promovido pela BibliOn, com Daniel Munduruku, e em leitura de O Espírito da Floresta, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O encontro aconteceu na segunda-feira passada, dia 17, e durou cerca de uma hora e meia.
“Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. (…) E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.”
Daniel, além de escritor, é formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, com pós em Antropologia Social na USP. Nasceu no Pará, filho do povo indígena Munduruku, da região do Vale do Tapajós.
No encontro promovido pela Biblioteca Digital do Estado de São Paulo (é gratuito, gente!), ele falou como, mais de 500 anos depois, o brasileiro ainda desconhece sua população nativa. Tem uma visão romantizada, daquela comunidade que vive isolada da civilização, ou mantém a perspectiva do colonizador, que retrata o índio como preguiçoso e inútil, inimigos do crescimento do Brasil.
Nascido no extremo norte do país, em uma aldeia próxima à fronteira do Brasil com a Venezuela, Davi Kopenawa é líder político do povo Yanomami. Destaca no ensaio “Gente de perto, gente de longe” que o brasileiro (re)descobre os índios pelos olhos (e pressão!) dos estrangeiros. Ainda importamos muito de quem somos - até a empatia necessária para compreender nossas diferenças. Escreveu ele:
“Os brancos em torno da nossa terra são hostis. Não sabem nada da gente e nunca perguntam como viviam nossos ancestrais. Só pensam em ocupar nossa floresta com seu gado e em destruir nossos rios para catar ouro. Só a gente de longe quer nos conhecer e nos defender. Suas palavras são fortes e vêm nos ajudar. Gracas a elas, a gente de perto, que não para de falar contra nós, desistirá de invadir a floresta.
Brancos vieram de longe para fazer uma exposição de nossas imagens. Viveram entre nós e ouviram nossas palavras. Viram-nos com seus próprios olhos e comeram nossas comidas. Fizemos amizade. Agora, o pensamento deles é direito, e eles estão ao nosso lado. Na volta deles, falarão de nós para as pessoas de suas terras. Contarão o que vieram e ouviram na floresta. Mostrarão nossas imagens e farão ouvir nossas vozes. Muitos deles, por sua vez, nos compreenderão. Se for assim, vou ficar feliz. Será uma coisa bonita e direita.
Quando a gente de longe nos conhece e fala de nós, a gente de perto hesita em nos destruir.”
No encontro do BibliOn, Daniel falou como nós nos distanciamos da natureza, não nos sentimos mais parte dela, preferindo dominá-la ou destruí-la, ignorando todas as consequências. Davi recorda, no artigo já citado, que em nome do desenvolvimento assinamos nosso atestado de óbito:
“Os brancos que vivem perto de nós são diferentes. Os fazendeiros têm muitos homens para desmatar a floresta. Derrubam as árvores e põem fogo na vegetação em grandes extensões. Tudo isso para não cultivar nenhum alimento, nem mandioca, nem bananeiras. Só semeiam capim para o gado. Os garimpeiros remexem os rios como porcos selvagens. As águas ficam sujas, amareladas, cheias de fumaça de epidemia dos motores. Não se pode mais beber água sem adoecer. Todos os peixes e jacarés morrem. Mas esses brancos repetem: “Vamos abrir estradas, desmatar a floresta, procurar ouro, trazer o desenvolvimento!”. Se continuarem a destruir a floresta dessa maneira, nada mais vai sobrar. Então, mais tarde, vãos e queixar de fome e de sede, como fazem alguns deles.”
Para os indígenas, segundo Daniel, não há outro professor além da natureza. Eles não compartilham da angústia humana pelo futuro, que ora nos move, ora nos paralisa. Acumulamos dinheiro e doenças por medo ou ansiedade por esse futuro. Lançamos essa sombra sobre as nossas crianças ao questioná-las sobre o que querem ser quando crescer, roubando-lhes o presente.
Os indígenas têm outra visão de tempo, ditada pela natureza. Não há saudade do que foi, não há pressa pelo que será. A estação mais importante da vida é aquela desfrutada agora. Assim, a criança já é tudo que precisa ser: criança.
Com a natureza, segundo Daniel, nós podemos aprender a construir o hoje. Com a natureza vivemos a interdependência. Para os indígenas, a potencialidade do indivíduo só faz sentido se agregar ao coletivo.
No artigo “O rastro dos brancos”, Davi reforça que nós, brancos, não sabemos nem queremos cuidar da floresta, ignoramos todos os avisos que a natureza nos dá sobre nossos costumes e hábitos destrutivos:
“Nós, que vivemos na floresta, sabemos essas coisas. Vemos os dias que não amanhecem e as auroras cheias de fumaça. Vemos, de noite, a lua que fica avermelhada e enfumaçada também. Vemos a chuva que não cai mais, ou muito pouco. Depois de um tempo ela volta, mas desta vez em chuvaradas que não acabam mais. A floresta começa a mostrar a sua raiva. Começa de repente a secar e a queimar por toda parte ou, ao contrário, a se cobrir de água sem parar. Então, nós xamãs, devemos fazer nosso trabalho para ajudá-la a conter esses momentos de raiva. E só quando ela se aquieta que podemos viver ali, sem perigo, e não só nós, os brancos também. Mas quando todos os habitantes da floresta tiverem desaparecido e todos os xamãs tiverem morrido, quando os brancos comedores de terra tiverem matado todas as árvores e os rios, reduzido seu chão a buracos lamacentos, vocês também sofrerão.”
Para os indígenas, a criatividade não é um fenômeno ou uma iluminação, mas uma solução imediata às necessidades do hoje. Ele era professor quando uma aluninha perguntou onde ela podia encontrar as histórias que ele contava. Queria revisitá-las em casa. Ele procurou nas bibliotecas, mas nada encontrou. Tornou-se, assim, o autor de 60 obras!
Diz, porém, que não escreve para crianças, mas para a infância que existe dentro de todos nós, independentemente da idade. Presta, assim, um serviço ao ajudar na desconstrução dos estereótipos dos quais, afinal, somos todos vítimas.
“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui”
Legião Urbana
Em tempos conturbados de Inteligência Artificial, sempre há tempo para avançar na inteligência ancestral. ;)
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