Não vou mentir: a biografia de Mário de Andrade, escrita por Jason Tércio, pode assustar. Como o próprio autor diz, estamos diante de um homem “ousado e tímido”, “recatado e escandaloso”, “confessional e comedido”, “modesto e vaidoso”, capaz de ser, em uma única existência, “poeta, romancista, contista, cronista, crítico de arte, musicólogo, folclorista, fotógrafo, professor, colecionador de arte, epistológrafo, jornalista, bibliófilo, ícone da vanguarda modernista e diretor do primeiro órgão cultural do Brasil.” Tudo isso em uma época sem internet, em que as distâncias eram percorridas de bonde, trens, navios, telegramas e cartas, muitas cartas.
Tércio debruçou-se sobre essa figura na década de 1990 durante um mestrado na Universidade de Brasília. Percebeu que não havia uma biografia do paulistano que grafou seu nome na história do Brasil em apenas 51 anos e quatro meses de existência. Viveu em um período conturbado: de guerras, de censura, de excessos. “A maioria das biografias que se publica atualmente é sobre pessoas que faleceram há não muito tempo; então, muitas pessoas que conheceram o biografado estão vivas. Logo, a técnica, o método inicial de um biógrafo é entrevistar parentes e amigos que conheceram aquela pessoa. No caso do Mário de Andrade, havia pouquíssimas pessoas, basicamente, encontrei o Antonio Candido e um garçom de um bar que o Mário frequentava. Mas, nem me preocupei muito com isso, porque, além disso, as pessoas que estão vivas podem não estar com a memória muito clara”, explicou ao Correio Braziliense. “Então, minha preocupação primeira e a maior dificuldade foi onde encontrar as informações verdadeiras. Felizmente, com a internet tive acesso a jornais da época, por exemplo. Informações sobre a família do Mário eu consegui muito na imprensa da época. Eles publicavam tudo naquela época. Tudo isso foi muito útil. Mas, claro, que não confiava na primeira informação. Sempre procurava confirmar com outros jornais. Ao mesmo tempo, isso me estimulou a procurar em outros arquivos, nos arquivos da Igreja Católica de São Paulo, em cartórios, por exemplo.”
A escrita do livro começou muitos anos depois, em 2010, e nos faz percorrer episódios que nossa memória preguiçosa cisma em esquecer, como o fato de que vivemos duas ditaduras, já que Vargas também impôs um regime autoritário, com prisões aleatórias e censura. Na contracapa, Ruy Castro, com larga experiência em biografias, alerta sobre a aula que Tércio dá sobre a famosa e polêmica Semana de 1922, definida pelo próprio Mário, anos mais tarde, da seguinte forma:
“Semana sem juízo. Desorganizada, prematura. Irritante. Ninguém se entendia. Cada qual pregava uma coisa... (...) Os discursos não esclareciam coisa nenhuma. (...) A Semana de Arte Moderna não representa nenhum triunfo, como também não quer dizer nenhuma derrota. Foi uma demonstração que não foi. Realizou-se. Cada um seguiu para o seu lado, depois. Precipitada. Divertida. Inútil.”1
O livro mostra, como diz Castro, “as grandezas e pequenezas” daquela turma, principalmente a de Mário, um protagonista cujas virtudes, não só obras, se mantêm inspiradoras quase 80 anos após a sua morte. O talento de Tércio para entrelaçar suas descobertas ao contexto histórico de um país que ainda não encontrou a sua alma torna a leitura ainda mais gostosa.
A partir da leitura do livro, separei 10 curiosidades sobre Mário de Andrade:
Mário não foi um aluno brilhante no colégio, nem se interessou em fazer uma faculdade, como o irmão Carlos. O pai ficou preocupado e tentou encaminhá-lo para uma profissão como contabilista, mas o filho, autodidata, gostava mesmo era de se deixar levar pela curiosidade. Frequentou a Biblioteca Pública do Estado, antes de começar a formar a sua própria, e devorou jornais e revistas, muitas das quais, mais tardes, importadas. Frequentou aulas ou cursos livres sobre os mais diferentes temas, descobrindo objetos de interesse ou mesmo paixões. O que é mais fascinante é que, durante a sua juventude, Mário teve muitas vezes que driblar a censura – inclusive, a religiosa, já que a igreja, na década de 1910, dava as cartas. Mais de uma vez, ele escreveu ao arcebispado pedindo autorização para ler de Madame Bovary, de Flaubert, ao Grande Dicionário Universal da Larousse.
O tal do ghosting não é uma criação dos aplicativos de namoro ou das redes sociais. Ele já existia no mundo analógico e ainda é, infelizmente, uma prática em alguns setores. À medida que a sua pretensão literária crescia, Mário sentia vontade de compartilhar sua produção. Mandou algumas poesias e sonetos para Vicente de Carvalho, segundo ocupante da cadeira 29 da Academia Brasileira de Letras, que nunca se deu ao trabalho de responder. Fez, então, uma promessa: não deixaria sem resposta quem lhe pedisse um conselho ou lhe confiasse sua obra, independentemente da qualidade dos textos.
Mário se autopublicou, como a maioria dos escritores de sua época. Seu primeiro livro, Há uma gota de sangue em cada poema, saiu assinado como Mário Sobral, um dos pseudônimos que usou (Don José foi usado em um concurso de poesia e Ivan, em uma crítica de arte). Era uma forma de se proteger, de “testar” seus textos e construir sua confiança. Não se engane: quem se autopublica também se expõe a riscos. O livro de “Sobral”, inspirado na I Guerra Mundial, um tema pouco explorado na literatura nacional, foi resenhado por dois jornais – um fez elogios discretos, enquanto o outro já foi um pouco mais crítico. O original de Macunaíma, em uma fase mais madura, em que seu nome já era sinônimo de prestígio, chegou a ser enviado a Monteiro Lobato, que se esquivou da publicação para não desagradar o seu público. A vida de escritor nunca foi fácil.
Anita que amava Mário que amava Tarsila que amada Oswald. O Clube dos Cinco, ou somente esses quatro, daria um texto à parte. O que vale, neste momento, é que Anita, massacrada por Lobato pela exposição que inspirou os modernistas, chegou a se declarar para Mário por carta, após partir para Paris, onde foi estudar. Aliás, ela se candidatou várias vezes à bolsa concedida pelo Estado, mas foi recusada, segundo Tércio, por preconceito ao seu problema físico, não por uma suposta incompreensão artística. Após a Semana de 1922, com a ajuda de artigos positivos publicados nos jornais, inclusive de Mário, ela conseguiu a sonhada viagem. Do navio ela teria escrito a declaração de amor à Mário, que, infelizmente, se perdeu ou foi eliminada pelo próprio destinatário, respeitando o pedido da remetente, que se arrependeu da confissão. Ele, desde o primeiro momento, se encantou por Tarsila e chegou a enviar mais de 50 margaridas, de cores diferentes, para o seu ateliê. A amizade de Mario e Anita esfriou com o tempo e rompeu, definitivamente, após a recusa de uma tela a óleo durante o 46º Salão Nacional de Belas Artes, em 1940. Mário, ao lado de Candido Portinari e Oscar Niemeyer, era um dos responsáveis pela seleção. Época de Colonização não foi considerado moderno o suficiente. Ela se ofendeu e, após mais uma troca de cartas, a relação acabou.
A sexualidade de Mário, que morreu solteiro, sempre gerou especulações. “Esse comportamento misterioso e ambíguo fomentava curiosidade e fofocas. Entretanto, seus gestos e poses um tanto efeminados e o jeito sedoso de falar nunca despertaram suspeita em Anita, caso contrário ela não teria manifestado o desejo de namorá-lo”, diz o biógrafo de Mário. Já Oswald, todo trabalhado na maldade, não poupou o amigo. Destilou insinuações e chegou a chamá-lo de “Miss São Paulo”. Um amigo mais generoso, Joaquim Álvares Cruz, perguntou-lhe diretamente se ele não sentia vontade de se casar. Segundo Tércio, Mário explicou-lhe em carta:
“Acredite, Cruz, que se não me caso não é por ser avesso ao casamento. Deus me livre! de ser assim uma dissonância na música da criação. Nem sou assim tão mesquinho que não tenha encontrado amares e outros ainda posso encontrar. Mas os meus amares crepusculejam ao nascer!! Esta minha cabeça! Este meu coração! Virá algum dia amar que seja aurora e dure o dia da vida? Não sei. Parece-me haver dentro de mim qualquer coisa que me faz sozinho.”
Mário reforçava que isso não o fazia triste. Teve, desde cedo, amores platônicos, epistolares e carnais. Segundo Tércio, relacionou-se com homens e mulheres. Um deles, um conhecido empresário que morava em Nova Iorque e lhe escrevia as mais apaixonadas palavras de saudade e amor.
Até o seu último suspiro, Mário morou com a família, o que provavelmente acentuou as insinuações sobre sua orientação sexual. Ele se tornou o centro das atenções domésticas após a morte do irmão Renato. O garoto de apenas 13 anos morreu de traumatismo craniano após bater a cabeça no chão durante uma dividida em um jogo de futebol. Mário tinha, à época, 20 anos. Ambos tinham na música uma forte conexão e a despedida precoce lhe lançou em um abismo. A depressão acentuaria a saúde frágil ao longo da vida. De tempos em tempos, ele caía de cama, com febre, dores abdominais e outros sintomas de causas muitas vezes desconhecidas. Na minha opinião, Mário padecia de paixão pelo mundo que se vislumbrava à sua frente. Dedicava-se de tal modo ao trabalho, às suas investigações ou à vida social que acabava esgotado. Burnout também não é uma invenção do século XXI. Justiça seja feita, porém: este solteirão deixou o “útero”, como chamava a casa da família aos 45 anos para viver, durante quase dois anos, no Rio de Janeiro, então capital federal. Instalou-se no bairro da Glória, próximo ao Catete, bem no meio do buchicho, com vista para a Baía de Guanabara O mais difícil, segundo o biógrafo, não era lidar com as tarefas domésticas, mas gerenciar as baratas. Mudou-se, depois, para a Ladeira de Santa Teresa, com vista para o Centro, com um silêncio quebrado apenas pelo sino do Convento das Carmelitas Descalças. Desilusões, além da saúde debilitada ainda mais pela saudade, o fez voltar para a Lopes Chaves, em São Paulo, onde o seu coração, afinal, residia.
Na morada da Barra Funda é possível ter um petisco da coleção de arte de Mário. A vida financeira dele foi um eletrocardiograma, com momentos de escassez de tirar o sono. Nas estantes, onde um aviso se destaca para a leitura in loco somente, enciclopédias e gramáticas, além de obras de ficção e não-ficção em diferentes idiomas. Segundo Tércio, política era o único assunto que não o atraía, diferentemente do irmão mais velho, filiado a um partido político. Contudo, Mário quebrou a neutralidade em 1932, quando defendeu São Paulo na Revolução Constitucionalista. À época, o país se viu dividido e a polarização (Olha ela aí!) abalaria as amizades de Mário, inclusive, com figuras famosas. Em sua coleção, havia ainda 150 álbuns dos mais diversos gêneros, além de partituras, clipping, documentos, correspondências e manuscritos, devidamente catalogados. Havia, é claro, obras de arte – de esculturas polêmicas, como a Cabeça de Cristo, de Brecheret, considerada uma blasfêmia pela família, a quadros de artistas internacionais e nacionais. Alguns deles, é verdade, eram retratos de si. Com mais de 1,80 metro e traços bem definidos, Mário foi retratado por muitos pintores e caricaturistas, totalizando mais de 70 obras, de artistas como Di Cavalcanti, Tarsila, Portinari e Anita (três vezes!).
Mário recusou vários convites para sair do Brasil. Amigos e admiradores tentaram persuadi-lo aos mais diferentes destinos – de Buenos Aires a Paris. Não aceitava passeios, sabáticos, homenagens, conferências ou salões de arte. Nada. Sua prioridade era descobrir este país continental, pois considerava esta a “única maneira de sermos artisticamente civilizados.’’ Isso não quer dizer que não se relacionava com artistas de outros países ou que não investigasses os seus tesouros – pelo contrário, foi um dos primeiros a escrever sobre a literatura modernista argentina e a cravar sobre o iminente sucesso de um jovem chamado Jorge Luís Borges. O coração de Mário vibrava com a possibilidade de se embrenhar pelo interior do Brasil – um sonho, por vezes, adiado, ora pela saúde, ora por falta de recursos financeiros. Quando o fez, armou-se de caderno, caneta e máquina fotográfica. Deslumbrou-se tanto com a arte de Aleijadinho, quanto com o folclore do Norte e Nordeste. Apaixonou-se por gírias, provérbios, canções, cantigas e tradições regionais, além de vocábulos indígenas, lenas e outros coloquialismos de surtar os mais certinhos. o/ Tudo que descobria o influenciava. Compartilhava este conteúdo em palestras, ensaios e livros. Nos textos, sobressaía-se o que Tércio chama de “exploração linguística”. Segundo o biógrafo, Mário insistia em “escrever naturalmente brasileiro”, “não pra se diferenciar de Portugal, porém porque somos brasileiros.” Não posso deixar de mencionar o terreno de São Roque (ê, terra boa!), comprado por 38 mil cruzeiros. A família não gostou. Mário se endividou por um imóvel de difícil acesso, isolado e com pouco conforto. A ideia era transformar o Sítio Santo Antônio em uma colônia de artistas. Foi doado para o Iphan, que o mantém aberto a visitação.
Ao contrário do que se pode pensar, Mário era de “festas e farras” tanto quanto de “missas e rezas”. O homem adorava carnaval, brincando nos salões de festas de São Paulo ou nos cordões de rua do Rio até o dia romper. Fumava três maços de cigarro por dia e tomava porres homéricos ao lado dos amigos. Um deles, aliás, é um boêmio conhecido: Vinicius de Moraes, com quem falava de samba e de poesia. Vinicius escreveu sobre o dia em que foi acordado por um telefonema comunicando a morte de Mário: “com dificuldade/ sentindo a presença dele/ do morto Mário de Andrade/ que muito amor do que eu/ mal cabe na minha pele.”2
Mário trabalhava em mais de uma obra ao mesmo tempo. Romance, poemas e contos eram atropelados pelos estudos e pelos textos de não-ficção que lhe traziam, afinal, uma segurança financeira. Ele nunca falava sobre o que estava em produção. “Um romance que eu queria escrever morreu por causa disso”, explicou, certa vez, para Vinicius. “Tive a impressão que ele já existia fora de mim.” Embora tenha dito que escreveu Macunaíma em quatro dias, no balanço da fazenda da casa do tio, a obra foi trabalhava com parcimônia e ganhou outras versões. As escapadas para a fazenda, na região de Araraquara, sempre lhe restauravam a saúde. Era mimado pelos tios, que vigiavam até se a luz do seu quarto ficava acesa até tarde. Sua estratégia, diante das reprimendas, era se recolher no espaçoso banheiro, onde se debruçava sobre uma mesa para continuar suas anotações e revisões. Mário respirava arte do momento que acordava até o último minuto. No modesto quarto da Lopes Chaves, barbeava-se ao som do gramofone ou recitando poesias, como Navio Negreiro, de Castro Alves. Ainda assim, tinha crises de insegurança ou de impostor, recusando ofertas vantajosas, que teriam engordado sua renda e prestígio. Uma delas foi da Editora Alfred A. Knopf, dos Estados Unidos, interessada em publicar um livro sobre o folclore brasileiro. Alguém duvida que teria pessoa mais indicada?
Como já deve imaginar, há muito que se falar ainda sobre Mário de Andrade, que também fez lá suas intrigas, alimentou alguns desafetos, mas deixou um legado que o torna maior que tudo. Tornou-se imortal, sem ter feito parte da Academia Brasileira de Letras, por escolha e convicção de que não servia para ser institucionalizado. Morreu de infarto ou de uma miocardite provocada por um estágio terminal de pleurodinia. A depressão, acentuada pela experiência na Política, também lhe roubou a energia vital. Não partiu antes de deixar a versão final de Lira Paulistana pronta, a ser entregue para Antonio Candido. O sociólogo, aliás, escreveu, na Revista do Arquivo Municipal3, que apenas a volumosa correspondência de Mário, a qual os pesquisadores só tiveram acesso 50 anos após a sua morte, permitiria “uma vista completa da sua obra e do seu espírito.” Ouso discordar, pois a biografia de Tércio, se não nos dá acesso à alma brasileira, o faz a de um dos seus mais prodigiosos filhos.
Obrigada, Jason Tércio, pela aula.
Obrigada, Mário, por tanto.
Tiau, Macunaíma4.
“Crônicas de Malazarte-VII, América Brasileira nº28. Abril de 1924, pp. 24 -25.
MORAES, Vinicius de. “A manhã do Morto”, Poesia Completa e prosa, 1976, p.236.
CANDIDO, Antonio. “Mario de Andrade”, Revista do Arquivo Municipal, nº 103, ed. fac-similar nº198, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 1990, p. 69.
Frase proferida pelo poeta Mário da Silva Brito, em homenagem ao amigo falecido.