“O apego é uma forma de trair a alma”, avisou Clarice Niskier, durante a encenação de “A Alma Imoral”, de Nilton Bonder. O texto é desconcertante de tantas formas que assistir uma única vez é pouco. Vi duas e ainda não consigo digerir direito. Só posso dizer que, cinco dias depois, comecei a arrotar os apegos que incomodam minha alma e machucam meu corpo físico.
Talvez o maior deles ainda seja o orgulho, que, dizem, é somatizado como dor nos joelhos. Ontem mesmo coloquei um pouco de gelo no direito. Coincidência?
Em outro livro1, o rabino fala da necessidade de uma humildade estrutural para se libertar das expectativas quanto a qualquer merecimento. Quem disse que mesmo que mereço o que acho que mereço? E por que eu insisto nisso?
Ele explica que “a expectativa em torno do merecimento debilita nossa capacidade de preservar a alegria”, além de ser incompatível com a gratidão. Vou até um pouco mais longe: estilhaça a autoestima e a fé. Eu também poderia dizer que demonstra o tanto de trabalho que eu tenho pela frente ou o tanto de traição à minha própria alma.
Pensar em desapego me lembrou do conselho de Barack Obama ao seu sucessor, Donald Trump. “...somos apenas ocupantes temporários deste cargo”, escreveu em uma carta deixada no Salão Oval, da Casa Branca, seguindo uma tradição iniciada por Ronald Reagan, em 1989.
O Letters of Note publicou uma compilação desses “bilhetes”, com todo o respeito possível à tradição, que muito me agrada, aliás. A Ghostwriter em mim se contorce de curiosidade.
Será que Bush Filho usou um Ghostwriter?
O que será que Trump escreveu para Biden, já que essa carta, bem esta carta!, não está disponível?
Elegi os meus conselhos favoritos:
De Reagan para Bush Pai: “Don’t let the turkeys get you down”, expressão similar à “força na peruca, meu filho”, isto é, não deixe os seus opositores abalarem sua autoconfiança e roubarem os seus sonhos;
De Bush Pai para Clinton: “Seu sucesso agora é o sucesso do nosso país. Estou torcendo muito por você.” Vale lembrar: um era republicano; o sucessor, democrata.
Clinton para Bush Filho: “A pura alegria de fazer o que você acredita ser certo é indescritível.”
De Bush Filho para Obama: “Muito poucos tiveram a honra de conhecer a responsabilidade que você sente agora. Muito poucos conhecem a emoção do momento e os desafios que enfrentará.”
Não é assim também na vida fora do Salão Oval, no quentinho de nossas casas e crises existenciais?
Não somos somente ocupantes temporários deste corpo e desta existência, experimentando sabores e dissabores que poucos conhecem?
Logo, faz sentido tantos apegos?
A Alma Imoral abre mais uma janela:
“Prevalece a crença de que se poderá fazer do próprio lugar estreito um lugar mais amplo.”
É preciso deixa o útero, romper as sucessivas bolhas, libertar-se dos apegos para se desenvolver e avançar. “Saber entregar-se às contrações de um lugar estreito para um lugar amplo é um processo assustador, avassalador e... mágico”, disse Clarice, ensinou o rabino.
No espetáculo, a atriz faz uma espécie de intervalo interativo, para que as revelações que nos tomam por arrombo sejam melhor absorvidas. Enquanto toma um copo de água, ela permite que a plateia escolha uma única palavra que represente a ideia mais impactante. Ela, então, a repete aquele trecho. O vazio que se segue acende a centelha, faz do vento um ciclone dentro de cada um.
Apego, disse um.
Estreito, soprou outra.
Solidão.
Pela escolha dos outros, me senti exposta – ou melhor, representada. Parece que aquele teatro pequeno formou um campo sistêmico, no qual desconhecidos se confrontaram com padrões e crenças mais comuns do que imaginavam. Encontraram até a provocação, ou reflexão, para a solidão de quem trai as tradições para seguir os desígnios da sua alma, agora, desnuda.
“Se os que mudam radicalmente de emprego, se os que refazem relações amorosas, se os que perdem medos, se os que rompem, se os que traem, se os que abandonam os vícios experimentam a solidão é possível que essa solidão seja quebrada no encontro com outros que conheçam essas experiências.
Haverá pior solidão do que a ausência de si?”
Não.
Não há.
Essa é uma das poucas certezas que tenho.
Ou será este mais um apego?
Haja yoga, meditação, pilates, oração, autocuidado para limpar tantos apegos, aliviar tantas contrações e apaziguar tantas ressacas mentais, emocionais e espirituais. Como na figura lá de cima, de autor desconhecida, viver bem na corda bamba da emoção e da razão.
“Cabala e a arte de preservação da alegria - preservando o gosto, a sinceridade, a autenticidade e a graça.” Editora Rocco.