Nos dias de hoje, ter esperança é ser resistência, é ser a revolução. Entre os “heróis do pau oco” da nossa experiência terrena, há rebeldes silenciosos, vestidos de sorriso, consistência e parcimônia, apontando como se faz, não com palavras adocicadas, mas com ações soberanas. É o caso de Valerie Jane Morris-Goodall ou, simplesmente, Jane Goodall, primatologista, mensageira da paz da ONU e Dama do Império Britânico.
A menina nascida em Hampstead, na Inglaterra, cresceu apaixonada pelas histórias do Tarzan e sonhava em um dia visitar a África. De família humilde, fez curso técnico, de secretariado, em vez de faculdade. Passou por um ou dois empregos, antes de juntar suas economias e viajar para o Quênia, onde foi apresentada a um famoso paleontólogo chamado Louis Leakey. Ele logo a contratou como secretária, mas o trabalho não se limitava à escrivaninha. Jane foi “obrigada” a acompanhá-lo à Tanzânia para investigar fósseis dos primeiros humanos.
Três meses depois, ela recebeu dele um convite para uma vaga improvável: observar um grupo de chimpanzés na costa daquele país africano. A pesquisa científica tinha como objetivo investigar o comportamento desses animais quatro vezes mais fortes do que o ser humano. Para Leakey, o trabalho não deveria ser feito por um especialista cheio de pompa, títulos, metodologias, crenças e preconceitos, mas por alguém com a mente aberta, apaixonado por aprendizado, fã de animais e portador de uma “paciência infinita.” Ninguém mais, além da jovem secretária, se encaixava nesse perfil.
Loucura?
Para a maioria das pessoas, sim; não para Jane, que aceitou o convite para passar boa parte do tempo agachada, em silêncio, esperando, observando, escalando árvores e cumes, tirando espinhos e ferrões de pernas e braços, coletando amostras da flora local, enfrentando a fauna, inclusive serpentes, que atravessavam suas pernas durante as longas vigílias.
Sem formação acadêmica, ela cometeu o “sacrilégio” de “humanizar” os seus objetos de estudo, dando a eles nomes. Fifi, Flo, Sr. McGregor e David Greybeard também tiveram suas personalidades e hábitos descritos. Tanto trabalho para virar alvo de chacota da comunidade científica. Quem ela pensava que era, afinal?
Jane não se encolheu diante das críticas. Continuou o seu caminho, fazendo o que gostava e o que achava certo. Parte de sua história e aventuras é contada em O Livro da Esperança, lançado com Douglas Abrams, o mesmo que escreveu Contentamento: O segredo para a felicidade plena e duradoura, a partir de um encontro entre Dalai Lama e Desmond Tutu. A obra com Jane segue o mesmo formato, uma conversa que entrelaça a biografia e o conhecimento da protagonista com estudos e reflexões feitos pelo coautor.
Assim, enquanto ela define a esperança como a capacidade de visualizar um futuro melhor sem menosprezar dificuldades e ameaças, Abrams compartilha a fórmula criada pela Ciência da Esperança (metas realistas + planejamento realista + confiança no cumprimento + suporte para resistir).
Para ela, há quatro razões para se ter esperança no futuro: o intelecto humano, a resiliência da natureza, o poder das novas gerações e o espírito indômito humano. Como o livro dedica um capítulo inteiro a cada motivo, seria raso demais tentar resumi-los aqui. O meu foco é mostrar como a capacidade de escuta de Jane ainda é um dos seus “superpoderes”, talvez aquele, junto com a curiosidade, que a destacou e a fez persistir.
1. A escuta como conexão humana
A fama fez de Jane uma grande contadora de histórias – não só pela natureza do seu trabalho, mas também vividas durante as suas expedições e conferências, com pessoas que ainda lhe procuram, pelos mais diferentes motivos, de chefes de povos nativos, que lhe pedem ajuda para lidar com problemas de suas comunidades, a vítimas de abusos e transtornos mentais, em busca de soluções para o seu sofrimento.
Uma delas foi uma moça chamada Anne, que lhe pediu apoio para reabrir o inquérito policial sobre o desaparecimento da irmã. Enviou-lhe como prova uma notificação policial, além de um abaixo-assinado, endossado por poucas pessoas. Das cartas as duas logo passaram a conversar por telefone, pois Jane lhe deu o seu número. Anne ligava três ou quatro vezes seguidas, normalmente chorando, mudando de comportamento e de voz constantemente.
Aos poucos, ao escutá-la, Jane descobriu que a jovem havia sofrido violência física e sexual na infância, traumas agravados pelo desaparecimento da irmã. Anne tinha 22 personalidades distintas e, a pedido da primatologista, foi capaz de desenhar três árvores genealógicas completas de suas personalidades. Também por incentivo de Jane, ela começou a escrever sobre os seus traumas e pensamentos ruins. Os telefones, assim como as cartas, foram gradualmente diminuindo. Ela conseguiu um emprego e adotou gatos.
Jane reconhece no livro os riscos assumidos com casos como esse, mas não se exime de ajudar quem lhe procura. “É uma enorme responsabilidade, e, para ser sincera, às vezes é estafante. Ao mesmo tempo, é um privilégio, porque, com frequência, elas dizem que conversar comigo as ajuda muito. Falam que minha voz é calma e pacificadora. Não entendo o motivo, mas passei a aceitar isso como um dom que recebi. E me sinto compelida a usá-lo. Ele me proporcionou um entendimento profundo das dificuldades e dos traumas que as pessoas enfrentam, além de uma verdadeira admiração pela maneira como elas lidam com o que lhes aconteceu, com determinação e coragem. É o espírito indômito!”
2. A escuta como catalizador de oportunidades
Jane sempre teve objetivos claros, mas isso não a fechou para o mundo ao seu redor – pelo contrário, ela sempre esteve aberta a uma conversa, onde quer que seja. Um bom exemplo ocorreu em um avião. Ela estava a caminho de Londres, onde participaria de um programa de TV, no qual haveria um confronto entre ela e o diretor de uma farmacêutica que utilizava chimpanzés como cobaias em pesquisas médicas. Jane tornou-se uma das principais ativistas para interromper toda e qualquer crueldade contra primatas. Além do uso em laboratório, esses animais eram caçados pela sua carne, gerando uma legião de órfãos.
Naquele voo, o lugar ao lado dela só foi preenchido pouco antes das portas do avião se fecharem. O senhor chegou esbaforido. Jane deu-lhe privacidade e só engatou uma conversa durante o jantar. Após falarem de amenidades, ela lhe contou sobre a sua causa e como estava nervosa com a missão que tinha pela frente. Ele a tranquilizou. Era presidente de um importante escritório de advocacia internacional e se ofereceu para defendê-la, pro bono, caso o embate lhe rendesse um processo.
Abrams perguntou a Jane se ela está sempre à procura de oportunidades. “Sim, mesmo quando estou cansada, sempre me pergunto se talvez exista uma razão para eu estar sentada ao lado de uma pessoa específica em um avião ou em uma conferência. Seja como for, sempre vale o pequeno esforço, só pra garantir. E conheci pessoas interessantíssimas dessa maneira, algumas das quais se tornaram amigos e apoiadores.”
3. A escuta como força interior
Já contei que os métodos de Jane foram questionados na academia. Como aquela moça sem formação poderia sugerir que chimpanzés tinham personalidade, mente e emoções?
Ela não se apequenou diante das críticas. Ouviu a voz interna e seguiu sua convicção, não só sobre o que presenciou na floresta, mas também sobre o que tinha vivido na infância com um cachorro, o Rusty. Em vez de discutir ou se ofender, ela continuou escrevendo e reportando. A academia, afinal, se curvou a ela. Até hoje ela é uma das poucas pessoas a fazer doutorado na Universidade de Cambridge sem um diploma universitário.
Jane é capaz de citar trechos da Bíblia, discursos de Churchill e obras de Shakespeare. Desenvolveu uma espiritualidade, calcada não só no que viveu, ouviu e leu, mas também em uma “sabedoria maior”. A passagem bíblica favorita da avó (“E como teus dias, assim seja tua força”) sustenta os momentos de ansiedade ou medo diante das inevitáveis adversidades da vida. Acredita, assim como Einstein, nessa sabedoria superior, a quem confia sua proteção e a superação de desafios.
Quando Doug pergunta se ela, criada como católica, acredita em uma força espiritual e de termos nascido por um propósito, Jane responde: “Parece ser o caso. Na verdade, existem apenas duas maneiras de pensar nossa existência na Terra. Ou você concorda com Macbeth que a vida não passa de uma “história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”, sentimento ecoado pelo cínico que diz que a existência humana não passa de uma “gafe evolucionista”; ou você concorda com Pierre Teilhard de Chardin, quando ele diz que “somo espirituais tendo uma experiência humana. (...) Bem, não tenho como convencer ninguém a acreditar, como eu, que existe uma inteligência por trás da criação do universo, uma força espiritual “em que vivemos, e nos movemos, e existimos”, segundo a Bíblia. Não posso dizer por que acredito nisso, simplesmente acredito. E é isso o que realmente me dá a coragem para seguir em frente.”
O que achou?
PS1: Já falei de escuta na edição #14. Tem mais vindo por aí.
PS2: A National Geographic foi a primeira publicação a “dar ouvidos” a Jane. Essa matéria traz fotos bem bacanas das aventuras dela.
PS3: O Nexo também fez um resumão sobre a vida dela.