O post 13 bem poderia ter saído na última terça-feira, 13 de junho, aniversário de Fernando Pessoa. Contudo, acho que ele não se importou com o atraso, porque eu estava fazendo o que ele mais gostava, imersa em palavras, encantada e em curto-circuito pelo universo que elas rompem em nós. Fui ao Museu da Língua Portuguesa, do qual Pessoa também faz parte, onde ele se mantém vivo, mesmo sem nunca ter pisado na terra onde Cabral fincou a bandeira portuguesa.
Entre as coisas que eu mais adoro na vida está visitar casas-museu para descobrir mais sobre essas pessoas ilustres, ir além do seu trabalho ou das suas obras. Não rola cafezinho com bolo na cozinha, mas há uma intimidade ou uma comunhão ao caminhar sobre os ambientes e observar objetos íntimos, além de retratos de família.
Assim, meu encontro com Pessoa foi em agosto de 2022, na casa onde ele morou por 15 anos, os últimos 15 anos de sua vida, em Lisboa, cidade onde também nasceu.
Pessoa é um personagem curioso, com uma infância sofrida. O pai, Joaquim Seabra Pessoa, morreu de tuberculose quando ele tinha apenas cinco anos de idade, em 1893. A mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, casou-se três anos depois com um cônsul português alocado na África do Sul, à época uma colônia britânica. O pequeno Fernando mudou-se, então, para Durban, cidade portuária de grande importância econômica e política. Aprendeu, provavelmente, ali a língua de Shakespeare, que se tornaria uma das suas fontes de renda no futuro. Aliás, quatro das cinco obras que publicou em vida foram em Inglês. À cidade onde viveu nove anos ele não parece ter se apegado, pois não há menções significativas em seus escritos.
Em 1905, aos 17 anos, ele retornou sozinho a Lisboa, para um curso superior de Letras. Não se sabe o motivo, mas os estudos não vingaram. Lançou-se no trabalho como tradutor de correspondências comerciais nos mais diferentes escritórios. Também passou a colaborar com jornais e revistas, seguindo, de certa forma, os passos do pai, um funcionário público que fazia crítica musical para o Diário de Notícias. O filho, porém, já se voltava à Literatura.
Pessoa morou em vários locais até se estabelecer na casa da R. Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, onde receberia, anos mais tarde, a mãe e os irmãos. Ainda assim, estava sempre sozinho – ou não, pois dizem que, desde criança, ele sempre teve amigos imaginários. Daí para os heterônimos é um pulo, né?
O primeiro, aliás, teria sido criado aos seis anos de idade: Chevalier de Pas, o cavaleiro de nada, em tradução literal. Esses personagens fictícios lhe fariam companhia e lhe provocariam até uma certa melancolia. Sabe aquela saudade que só um bom português sente?
O “cavaleiro de nada” foi criado pouco após a morte do pai e a mudança de país, dois lutos enormes para uma criança processar. Isso fica claro ao ler o rascunho de uma carta escrita ao escritor e diretor da vista Presença Adolfo Casais Monteiro em 1935:
“Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho — um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas — e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.
Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente.
Além disto, esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.”
Essa amizade imaginária “se sofisticou” ao longo dos anos. Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis tornaram-se seus heterônimos mais conhecidos, não porque tinham nome próprio, mas uma biografia completa, incluindo mapa astral e assinatura.
Caeiro nasceu em Lisboa e se refugiou no campo após a morte dos pais, ainda na infância. Não era um homem instruído, mas tinha a sabedoria dos mais simples. Era chamado de “mestre” por Pessoa. Teria morrido jovem, aos 26 anos, de tuberculose, assim como o pai do seu criador. Campos, o “caçula dos três”, nasceu em Tavira, uma ilha do Algarve. Aprendeu latim, fez engenharia, morou na Escócia e viajou ao Oriente. Já Reis, médico do Porto, expatriou-se aos 68 anos para o Brasil, país onde Pessoa jamais pisou. Estudou com os jesuítas, mas em terras tropicais se rendeu ao neopaganismo. Cada um deles debutou em obras publicadas nas mais diferentes revistas e jornais.
Pessoa tinha intimidade com essas “pessoas” vivas em si – Campos, aliás, chegou a escrever a Ofélia, a única namorada conhecida de Fernando, para terminar o relacionamento entre os dois. Imagine se isso vira moda...
Bernardo Soares, autor da maior parte dos textos do Livro do Desassossego, é considerado semi-heterônimo, pois sua personalidade não seria tão diferente da de Pessoa. O pobre não tem data de nascimento e, aparentemente, vivia entre delírios.
Em carta a Casais Monteiro, Pessoa teria comentado como os heterônimos surgiram:
Pessoa era compulsivo – lia de tudo, rabiscava os livros e encheu um baú com escritos. Sua biblioteca teria começado aos 15 anos, quando ganhou, ainda em Durban, um prêmio escolar em livros. Leu da Cabala a Walt Whitman, de Drácula a Sêneca.
Patti Smith, durante visita à Casa Fernando Pessoa leu Álvaro de Campos
Naquele baú foram encontrados mais e 30 mil papeis, com textos e poesias inéditos. Entre eles, de forma completamente desordenada, estava o Livro do Desassossego, a obra mais conhecida e traduzida de Bernardo e Fernando.
No dia 29 de novembro de 1935, Fernando foi sozinho ao Hospital São Luiz dos Franceses, no Bairro Alto, em Lisboa. Sentia-se mal. Foi internado, aos 47 anos, provavelmente, de um problema no fígado. Pediu aos enfermeiros um pedaço de papel e lápis. Escreveu: “I know not what tomorrow will bring” Em tradução literal: “Eu não sei o que o amanhã trará.”
Ele não sabia. Nós sabemos.
A Eternidade.
PS: A biblioteca particular de Pessoa é considerada patrimônio português. Está 100% digitalizada e disponível online.
PS2: Sabia que existe o adjetivo Pessoano? Segundo a Infopédia, refere-se tanto ao poeta, quanto à sua obra ou, ainda, o especialista ou admirador de Fernando Pessoa. Algum pessoano por aí?
PS3: Não há como fazer um post sobre Pessoa e seus heterônimos sem mencionar uma de suas principais intérpretes, a Abelha Rainha, Maria Bethânia. Escolhi deixar o Poema do Menino Jesus, escrito por Caeiro.
Caiu um cisco aqui. E aí?
Ai, Maricotinha…
Tem alguém aí? ;)